O TRADUTOR
Diogo de Castro Costa
 
 

Esse cara não vai passar na minha frente, que idéia?! Na minha frente não!

- Quem dá vez ao palhaçinho?

Se essa cara passar juro que... Passe lá trás, aqui não!

- ¿Qué passa hombre?

- Ah! Olha a hospitalidade gringa! Obrigado, tenkiu cabron, tenkiu.

- ¿Qué pasa?

- Já passei, jah passei cabron. Obrigado, o palhaçinho agradece. A Bahia agradece!

- ¿Qué pasa?

Os argentinos já sabem da esperteza brasileira, esse daí deve ser galego. Hoje a fila do elevador Lacerda está cheia de turista, todo mundo quer subir pra cidade alta. Devem ir ao Pelourinho; suecos, espanhóis, alemãs rechonchudas com as bochechas tostadas de sol, italianos, e aqueles ali devem ser americanos. Baiano mesmo só eu, e também esse palhaço idiota, sem esquecer do oficie boy, o capoeirista e o zelador do elevador.

Pronto, a porta abriu. Mas que?... O americano ficou na frente da porta? Quero passar! Séculos de cultura na frente e não aprende que no elevador Lacerda entra por uma porta e sai pela outra! Amigo, saia daí!

- Por favor, pro fundo senhor.

- What did you say?

- Pró fundó! Pró fundeo!

- What?

- Sai da frente babaca!

- Sai daê!

- Rock meiner idiotic Frontseite! Sohn des Kuh! Sohn des Prostituierteen!

Tenho que ajudar o americano. Até a alemã gorda ordenou que ele saísse da frente. Operação resgate soldado Ryan... Pela primeira vez na vida escuto um palavrão em alemão. Não é por menos, todo mundo querendo entrar no elevador e esse adiposo yankee atrapalhando a passagem! O capoeirista vai dar uma meia-lua e uma benção nesse pobre homem. Vou salvar o gringo, afinal, nossos preceitos constitucionais buscam integração, então, não custa ser hospitaleiro.

- Sir! Here! Here!

- Oh! Ok, sorry. It forgives me.

Coitado. Escorrego no inglês, e ele não entende nada de português. Americano burro. Bastava ele ler na cara das pessoas pra saber que está fazendo merda. Isso. Fique aí. Estou de mau humor mesmo. Hoje pra mim não tem chopinho, acarajé, nada. Tirem seu sorriso do caminho que quero passar!

- Cê fala ingreis?

- Eu?

- Fala ou não fala?

O que esse oficie boy quer? Não gostei do olhar desse cara.

- Só sei o básico e alguns palavrões. É só assistir alguns filmes que se aprende alguma coisa.

- Então beleza...

Beleza o quê? O que esse carinha quer? Só respondi por que sou educado. Vou dar umas suspiradas aqui no meu canto. Essa espanhola é bonita pra cacete! Que pele! Que seios! E dá pra fazer espanhola na espanhola... As baianas também são boas, mas uma gemida espanhola ao pé do ouvido deve ser sensacional.

Elevador subindo e 20 segundos de silêncio. Uma olhadinha pra espanhola. 30 segundos, pô, tá demorando. 40 segundos... Que demora é essa? O elevador não abre... Só faltava essa, ficar preso no elevador Lacerda!

- Assalto! Bora! Todo mundo colocando dinheiro na sacola!

- What?

- ¿Qué pasa?

- Was geschieht es hier?

Merda!.. Tenho que dar algum dinheiro... Lá se vão cinco reais!

- Você não!

- Eu não o quê?

- Você não precisa me dar grana, vai traduzir!

- Eu?!

- Vá, anda logo! Fala pro gringo! Quero a câmera dele aí!

- Ora essa?! Puxa a câmera do pescoço dele!

- Mas não quero machucar o gringo!

- What?

- Uate o caralho! Vamo rapá, me ajuda aqui, fala pra ele me dar a câmera!

- Todos vão achar que sou assaltante também, já lhe dei grana, me deixe em paz!

- Te deixá em paz? Pensa que é quem véi? Não se bote não, não se bote não que te mato!

Esse desgraçado nem deve estar armado, fica com a mão debaixo da camisa, na cintura, em cima do pinto.

- Anda porra, fala pra ele...

- Calma! O que eu posso fazer é dizer palavras chaves.

- Palavras chaves? Tá lôco véi? Que merda é essa? Quero a câmera do gringo ali!

- Então diga excuse me.

- Ô gringo! Hey man! Esquiuzimi!

O americano deu a câmera para o assaltante e fez pose. Isso não é uma foto! É um assalto! Esse cara é muito ingênuo, irá colocar todos em perigo.

- What? Sorry, this is my...

- Mai uma...! Isso fica comigo. Anda, tira o relógio!

- ¿Qué está ocurriendo?

- ¿Qué pasa?

- Was geschieht es?

Burros! Quem diria?! Até a alemã gorda não entende! Todos irão morrer se não fizer algo!

- What? What do you.

- Atenção seus merdas gringos! Não vou ficar aqui traduzindo mais porra nenhuma, dêem a money pra esse cara! Everybody! They place the money in the bag! All the money in the bag! All money!

- Mein Gott!

- ¡Mi Dios!

- Oh my! Jesus Christi!

- Jesus morreu rapá!... Jesus morreu tradutor?

- Sei lá!

Não sou tradutor seu desgraçado e não quero dar conversa senão passo como ladrão aqui. Vou colocar mais cinco reais na sacola. E lá se vai minha grana...

- Dont kill me, dont kill me please!

- Es tötet mich nicht!

- ¡No me mata!

- Agora todo mundo entende! Tão chorando, bora! Passa tudo! Ôh gringa gostosa... Gostosa né cara?

Esse desgraçado fica puxando assunto comigo... Vou levantar os braços pro alto.

- Hã hã, é boa mesmo.

O americano já está com medo de mim. Melhor colocar mais cinco reais na sacola pra não sair preso daqui. Isso vai ser um escândalo, imagine só, assalto no cartão postal de Salvador! Será matéria no New York Times, El Mundo, até na CNN, um estouro mundial! Caso seja um simples suspeito estarei morto!... Droga! Mais cinco reais na sacola, meu dinheiro, meu dinheiro!

- Tá escondendo grana tradutor?

- É que esqueci, não tenho mais nada.

O sacana ainda faz piada. E essa porta que não abre.

- Quer me dar grana, então tá bom. Não precisava véi, você é meu brother!

- What? Your brother?

- ¿Su hermano?

- Er ist Bruder von es!

Essa alemã gorda vai me entregar! Nem perguntou! Afirmou! Sou um homem morto, um...

- Not! Porra! Not! Não sou o brother dele, como se diz... He is not my brother! Don't whit me! Eu não sou o brother dele!

Tenho que dar mais dinheiro, só tenho um vale transporte e um ticket refeição. O desgraçado vai me deixar sem almoço!

- Toma esse ticket e não fala mais que é meu irmão!

- Relaxa aí véi, relaxa aí. Não precisa me dar mais nada, os gringos tão dando tudo, queria que essa espanhola desse também... Como é gostosa em espanhol?

- Sei lá, isso não sei não.

- Qual é tradutor? Fala aí, me ajuda aí.

- Vá à merda.

- O quê? Não se bote não véi! Não se bote não! Tá tirando onda comigo é?

Vou morrer. Melhor sair daqui morto a voltar pra casa andando. Os dólares fascinaram o assaltante, ele está feliz demais pra matar alguém.

- O seguinte é esse, quando o velho abrir a porta fiquem calados, não gritem!

Burro. Como se entendessem.

- Fala pra eles véi! Fala! Óh aqui óh!

- They are silenced when the door to open! All! All in silence!

Nem sei se está correto o que digo, tenho que salvar minha pele. A porta abriu. O capoeirista começou a tocar berimbau e cantar. - Zum, zum zum, capoeira mata um! Zum, zum zum, capoeira mata um! Pode ter maribondo, é zum zum zum, pode ter maribondo, é zum zum zum! Óa oaê, quero vê bater quero vê cair! Óa oaê, quero vê bater quero vê cair!

Mais cinco capoeiristas aqui fora?! Devem estar em conluio com esse cara, formaram uma roda em segundos! Todos os turistas se dispuseram em torno dos capoeiristas. A polícia apareceu. Aqui tem polícia onde tem turista. Porém, nessa típica multidão soteropolitana, qualquer um foge. Até os pombos que dormiam na prefeitura espiaram a roda de capoeira. Deve ser tudo armação. O palhaço também pode ser do bando, fez fila ao sacar dos bolsos fitinhas do Senhor do Bomfim. O porteiro do elevador disse que foi ameaçado e parou o elevador no meio, mas desconfio.

E o americano gordo ficou lá, de frente pra porta fechada, absorto, esquecido, com a camisa desbotada esgarçada, e a bermuda cheia de bolsos - agora todos vazios. Aqui no Lacerda é assim: entra por uma porta e sai pela outra, e ele não aprende nunca! Por isso, inspirado no poeta Castro Alves, e com toda minha hospitalidade baiana, vou dizer:

- "Onde vais, estrangeiro? Por que deixas o solitário albergue do deserto? O que buscas além dos horizontes? Por que transpor o píncaro dos montes, quando podes achar o amor tão perto..." Que amor que nada! Ache a saída! Aqui seu gordo! Here! Here! Aqui no Lacerda entra por uma porta e saí pela outra! Entra por uma porta e sai pela outra!

- Fuck off man! Kiss my ass! Pussy sucker!

- Mas veja você? Ajudo e ainda me xinga!?... Então fuck you too! É isso mesmo! Então your mother fucker too! Fuck you and your family! Every! Fuck all! Vá pro Pelourinho, anda logo e sai daí!

- Fuck off man! Fuck off!

Acho que o americano deve ter entendido o que eu disse...

- Me solte man! Pare! Me solte man!

- Fuck off!

O americano me empurrou e nós acabamos entrando no meio da roda de capoeira.

- Zum, zum zum, capoeira mata um! Zum, zum zum, capoeira mata um!

E todos da roda ordenaram que nós jogássemos capoeira. E aqui é jogar mesmo, como brincadeira - algumas vezes -, mas o americano partiu pra luta, começou a boxear, deu um soco e eu caí no chão.

Uma capoeirista me defendeu, viu maldade no americano e passou uma rasteira nele, foi um golpe mais fraternal a que uma agressão; antes que caísse no chão, ela apoiou a cabeça dele, sorriu, e estendeu a mão. Sorte dele, pois baiano não foge de briga, e eu ia dar uma benção nele e... Ia nada, sou hospitaleiro, mas que ele era burro era! Pode ensinar a um cão que ele ande com duas patas, mas ainda será um cão! Xenofobia? Não mesmo! É memória fraca! Lerdeza! Esquecimento! É xenoburrice! E também endoburrice, afinal, aqui mesmo encontramos bons exemplares...

- Hein?

- Você não idiota!

- Idiota?!... Colé a sua véi?... Receba a galinha pulando!

Um dos capoeiristas tomou a carapuça, e, após pronunciar o brocardo baiano, me lançou um chute violento no peito. Fui cambaleando tentando assimilar o golpe até o corrimão do mirante... Ufa! Quase desço da Cidade Alta até a Cidade Baixa num segundo! A queda seria mortal...

- Ei! Você!

- Eu?

- Esqueceu? Sim, você! Você que me chamou de idiota!

- Idiota?!

- Óa oaê, quero vê bater quero vê cair! Óa oaê!

E cheguei à Cidade Baixa num segundo.
 
 
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