CERTEZA É BLEFE
Gislaine Bueno
 
 

Os potinhos de tempero continuam no mesmo lugar. O pacote de pão, o copo sobre a pia. As latas de ervilha estão sobre o balcão, empilhadas. Os objetos permanecem todos lá, sem mudar de posição. O copo sujo não troca de lugar com o saleiro.

Aí você entra.

A cozinha está escura, mas não acende a luz. Consegue ver tudo. As coisas imóveis. Em silêncio.

Aquela falta de mudança te faz sorrir. Você ou eu. Eu sei que os móveis e a louça continuarão assim até que alguém se dê ao trabalho de mexer com eles. Neles. Do contrário, vão ficar do mesmo jeito. Eu posso ir embora da cidade com a certeza de que nada vai mudar. Talvez os fungos apareçam. Baratas. Mas o armário vai continuar de portas fechadas, parado. Talvez cheguem os cupins.

Talvez a casa fechada por meses desperte a inquietação dos vizinhos. A caixa de correio lotada com correspondência velha e molhada. A chuva vai continuar a cair e o carteiro vai continuar a colocar cartas. O lixeiro vai se acostumar a passar direto pela casa. Se fosse pessoa compreensiva recolheria a correspondência velha espalhada pela calçada.

A única coisa que o queijo da geladeira tem a fazer é passar da validade. E permanecer no seu lugar, que é ao lado da margarina.

A luz vai ser cortada. A água. Você lá longe. A grama do jardim vai crescer, ladrões vão observar o vazio da casa. Vasos de planta juntando água da chuva pra criação de dengue vão motivar as várias visitas vãs dos agentes de saúde.

Lá de longe, eu preservo a certeza. Guardo a chave da casa pra lembrar que as latas de ervilha continuam empilhadas. E que ninguém me fará duvidar da posição dos móveis. Ou da sujeira intacta da louça. A chave está sempre comigo. Pra eu nunca questionar se o copo está mesmo sobre a pia. Não há dúvidas, ele está lá. Eu tenho certeza.

 
 
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