DESLEMBRANÇA
Kátia Rodrigues
 
 

"Em nenhum lugar existe tempo algum"...
- Mário Peixoto -

Sentado no canto da sala, televisão sem som, figuras ausentes. Refletida na tela o brilho da rua; terceiro andar de um prédio baixo. A luz amarela da noite entrando pela janela. Quase quatro horas da manhã. Acendeu o cigarro, pendente há algum tempo, no canto da boca, com um palito de fósforo. Atirou a caixa ao sofá, recostou a cabeça, soltando a fumaça. Fechou os olhos no silêncio. Tudo a sua volta era ausência. Distâncias da vida lá fora dos que lhe eram caros, do mundo. Não sabia que dia era hoje e, isso já não importava. A vida não lhe pedia presença e ninguém lhe sentia a falta.

Era um nada. O tecido desgastado da poltrona que um dia fora verde claro, já não tinha cor. Sua cor era do tempo, de manchas guardadas, de festas, recordações que não lhe diziam respeito. Aprendera a viver em sem palavras e, calar-se logo mostrou ser o melhor caminho. Indolor, asséptico, sem divagações, contradições, nada! Sorvia a fumaça como para se esconder; por trás da cortina fechava-se e, nos muros das vidraças vivia o que se chama vida. Para ele era uma redenção. Rendera-se. Entregara-se diante de sua incapacidade de mudar. Não seria capaz de mudanças, nunca. Preferira parar no tempo, desintegrar-se, pensando que assim sobreviveria a si mesmo. Enganara-se. Morrera quando perdera sua ousadia, coragem e todos seus desejos.

Tragando tentou lembrar quando foi à última vez que falou com alguém, ou mesmo olhou nos olhos. Dizia-se, quando era bem jovem, que não olhar diretamente nos olhos era um sinal de respeito. Então abaixava a vista diante de um ou outro que lhe cruzava o caminho, até não ser mais visto, nem questionado. Fazia uma caminhada pelas manhãs, sempre às segundas feiras, antes da chegada da faxineira que chegava pontualmente às oito horas. Assim não precisava vê-la, nem ser visto.

Ela vinha, limpava os cômodos, colocava mantimentos na geladeira, que lhe garantiam as refeições por mais sete dias. Não sabia quem pagava essa conta, e também não questionara. Nesses dias andava até chegar ao parque, procurava não ouvir os ruídos, e tentava ausentar-se sempre, cada vez mais. No meio da tarde começava o caminho de volta. Quando chegava a casa estava pronta, a roupa lavada, como se tudo em sua vida fosse normal. Levantou-se e foi até o quarto. Acendeu a luz, abriu a gaveta da cômoda. Apanhou um vidro de comprimidos guardado engoliu-os, um a um, até contar vinte e seis. Agora poderia apagar-se no tempo e descansar eternamente.
 
 
fale com a autora