NOTAS DE PIANO EM ABRIL
Leila de Barros
 
 

Resolvi colocar mesmo um barbante no dedo mínimo para me lembrar dos meus encontros comigo mesma.

A tarde não cai, antes desliza no horizonte outonal, assim como meus anseios mais adormecidos.

Ela evolui mansamente em sombreados e vai desenhando as novas silhuetas dos edifícios e os novos vestígios das pessoas, como um pincel em estilo naive.

Os tetos das igrejas assumem o perfil gótico de artistas longínqüos e o imperador dourado vai se retirando com seu séqüito prestigioso.

Um inusitado e repetido festival de luzes estelares se interpõe entre mim e a noite insofismável.

Sou a maestrina dessa escolha.

Quebro as luzes externas com uma cortina diáfana.

Recolho-me ao silêncio proveitoso e decido tomar chá em goles minúsculos, sorvendo a paciência e a nostalgia de estar comigo.

Andei com saudades de sentir o arrepio acetinado de minha pele submetida ao encantamento das coisas frugais.

Pão com manteiga, chocolate quente, café fumegando, um cobertor xadrez...

Esses elementos mágicos, incorporados em minha tarde de outono são como toalhas de banho mergulhadas em amaciantes da alma.

Hesito entre ler um livro que andava adormecido ou olhar simplesmente pela janela e contemplar.

Perceber o aroma e os indícios das tardes de abril.

Olhar para dentro de mim, com olhos de binóculo e ver se ainda há algum vaga-lume aceso...

Sentir o gosto do mel, pingando lábios adentro.

Lembrar do aconchego que há em minhas memórias, minha pele, meu olhar secreto sobre o finito e o infinito.

Vou descobrindo as células da alma, as teias de aranha desenhando geometrias nas paredes e as notas do piano vão se soltando e ocupando as quinas de minha sala.

Elas falam tão alto ao meu esquecimento imperdoável, que desnecessário torna-se o meu falar nesse momento.

 
 
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