ESQUECIMENTO
Samuel Silva
 
 

Ele olhou nos bolsos, todos os bolsos de um terno; remexeu a maleta. Piscou para Deus, promessa para são longuinho, cosme e damião, fez o que podia, mas não achou as chaves. Voltou para o prédio, refez trajetos investigando o chão como velho sabujo. Perdera as chaves e na lembrança não encontrou nenhuma dica. Quis chorar de raiva impotente e achar outro culpado que não fosse ele próprio e achou o pneu do carro, onde descarregou em chutes suas frustrações. "Logo hoje", pensou, que saíra tarde do trabalho, estava atrasado para buscar a noiva e ainda teria que ir àquela festa da superamiga-quase-irmã dela!

Um longo suspiro, contagem até dez e repetiu, tentando ser convincente, o mantra calmante. Começou mudo e quando se deu conta já quase o gritava: "Calma, porra! Pensa!". Se tentasse em sânscrito talvez não fosse tão eficaz quanto o eco de suas palavras reboando pela rua deserta. Àquela hora era o único idiota e seu carro era o único de um idiota. "Ê, bairrinho fuleira em que vim trabalhar". Entre duas casas decadentes pode ver a escadaria que subia o morro, famoso pela invencibilidade dos traficantes locais às investidas da polícia (raras) e dos grupos rivais (mais freqüentes). Pegou o celular a tempo de ouvir o bip curto e a luminosa tela colorida se apagar. Acabara a bateria. Tecnologia é um negócio ótimo, quando funciona, mas era excessivamente sujeita à lei de murphy.

Saiu apressado de perto do carro para alcançar uma rua mais movimentada um telefone público para avisar a noiva e pedir a ela que ligasse para o chaveiro 24hs. Quase corria, o sapato mr. cat estalando no calçamento irregular. Ligou para a noiva, explicou o problema, ouviu reclamações e esporros, aceitou estes e aquelas com raro estoicismo, totalmente concentrando em conseguir que ela fizesse o favor. Complicou: ela tenteava alguma contradição na história que ele contou, com perguntas estranhas e desconexas e apresentava obstáculos quase invencíveis à missão que ele lhe confiava: não tinha telefone de nenhum chaveiro 24hs; não, nem naquela infinidade de imãs de geladeira; ah, também não tinha lista telefônica em casa; ligar para 102? "Mas não tinha que saber o nome para a moça achar o telefone?" "Não papai saiu e você sabe que ele não usa celular!" "Não, meu irmão ainda não chegou." "Você vai mesmo se atrasar? Você não gosta da Mirtes, né?" "Você está fazendo isso de propósito! Ou então está em algum bar com uma puta dessas suas amigas!" "Fala direito comigo, eu não sou dessas zinhas que você está acostumado!".

Ele gostava dela, talvez a amasse, mas o sangue subia rapidamente e ele foi se irritando. Começou a ser grosseiro. Ela grita mais alto do que ele. E mais eficientemente. Ameaça não ajudar. Promete ir para a festa da Mirtes sozinha, quem sabe não arrumava lá um homem que não a maltratasse, não fosse grosso, etc. E fosse pontual! Ele a mandou à merda, num momento de insensata explosão, ela reagiu como era de se esperar, desligando o telefone na cara dele. Agora era que a vaca tinha ido para o brejo. E sem sininho, não conseguiria nem ser achada!

Não tinha cartão telefônico, aquela ligação malograda fora a cobrar local e ela agora se recusava a aceitar novas. Alguns quarteirões descendo a rua havia um boteco, talvez vendesse cartão telefônico.

Boteco pé sujo, só cigarro e bebidas; os petiscos tradicionais serviam moscas, homens e mulheres já meio bêbados falavam alto entre si. O dono do bar, sujeito mau humorado, resmungou que não vendia cartão de telefone e que não, não sabia onde ele podia comprar um por ali. Não havia muito o que fazer, exceto tomar uma cerveja para relaxar e depois pegar um táxi para casa e de lá resolver o problema do carro. E depois ligar para a noiva. A cerveja estava muito boa, geladinha, e desceu refrescante demais naquele calor todo. Desceu tão bem que não durou e ele pediu outra ao mau humorado. No meio dos bêbados, viu uma mulatinha que não era de se jogar fora, com aquela cara de safada, uns peitinhos passáveis e uma bundinha de criança. Pediu a quinta para o dono do bar, um cara até simpático depois que se conhece melhor. Guardou a gravata no bolso do paletó, que pendurou em um prego na parede, logo abaixo do pôster do Vasco da Gama, o almirante, não o time de futebol, e abriu três botões da camisa. Sorriu para a mulatinha e ela se aproximou de copo vazio e vestido cheio de volúpia, com aquele andar malemolente do estereótipo.

Ficou encantado como ela era articulada, embora ele não entendesse direito o que ela falava, os sons pareciam meio abafados, enquanto o portuga passava por cima do balcão a sétima (ou era a oitava) cerveja, que despejou com vontade no copo dele e dela.

Silvânia era o nome daquela mulata deliciosa, peitinhos de maçã escondidos no tomara-que-caia do vestido, um par de coxas grossas e uma boca que deveria fazer loucuras. Por um momento ele achou que ela falara com ele em inglês, mas devia ter sido só impressão, embora não se deva esta percepção a qualquer preonceito, pois a menina era bonita e demonstrava ter tido uma boa educação formal. Quem diria, hein, naquele bairro fuleira encontrar aquela jóia de garota.

Ele viu logo que estava numa noite excepcionalmente feliz, persuasivo, espirituoso, inteligente e sedutor e que aquela ninfetinha estava no papo! Ainda mais que ela bebia bem, a danadinha, e o tomara-que-caia não ia precisar de muita reza para cumprir a promessa, quase derrubado por aqueles peitos monumentais. Ela pediu licença para ir ao toalete e ele se admirou daquela bunda rebolativa, sensual mas sem vulgaridade, merecedora mesmo de uma escultura em praça pública em homenagem à beleza da mulher brasileira.

A décima (?) cerveja foi-se em um átimo, como também se foram os freqüentadores do barzinho e ele de repente se viu só com aquela deusa de ébano, o portuga gentilmente convidando-os a voltar no dia seguinte enquanto ia fechando seu estabelecimento. Com aquele modo direto e bastante objetivo de ser, falou o valor da despesa e esticou a mão para receber a paga.

Sem pestanejar, o cliente pegou o paletó caído no chão para pegar a carteira no bolso interno esquerdo...direito...externos...Ah, o bolso da calça...Riu para si mesmo, estava na maleta..."Olha só que coisa", a voz enrolada de constrangimento, "está na minha pasta que está...Onde está minha pasta? O senhor não vai acreditar..."

Acordou com forte dor de cabeça, alguns hematomas, o sol forte brilhando no céu, a mmória pulsando em lampejos, flashs de uma noite confusa. "Vou pegar o carro e ir embora para casa!" A rua deserta e mal iluminada na boca do morro ardia de calor, vazia de pessoas e carros.

 
 
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