O GANGREL
Kátia Rodrigues
 
 

Levanto no meio da noite. Gotas de suor molham meu rosto. Rápido abro a janela à procura de luz, que só há lá fora. Céu sem estrelas, nuvens paradas escondem o negro da noite numa névoa desbotada. Sem brisa, sob a luz alaranjada da rua, a cidade dorme. Observo atentamente os prédios em volta, luzes fracas, diluídas por trás das janelas, outras desligadas. Todos se aquietam...

Seus sonhos me alimentam e nessa hora despertam meus instintos mais guardados e ocultos. Habituei-me a espreitar na noite vidas que vivem próximas e não são capazes de olhar ao redor. Essas são as minhas vítimas. Pensam ser humanos e levam vidas tão parecidas. Falta-lhes originalidade, sempre concluo.

De olhos fechados, rasgo as paredes, escuto vozes, risos, os suspiros que a noite guarda. De seus segredos pouco a pouco me aproprio. Desses medos me fortaleço a cada dia, manipulando suas fraquezas e tornando-me o grande perigo oculto, que lhes amedronta num piscar de olhos. Sinto-lhes o coração pulsar no escuro da madrugada. Alguns percebem uma força estranha que os cerca, invade, e sentem um leve tremor no corpo; ou se assustam com o que pensam ser nada. Nessa hora minha presença cresce.

Completamente invisível roubo-lhes os sonhos, devaneios, desejos. Mastigo-lhes as esperanças, trituo-lhes as alegrias. Ao despertar restam-lhes a vida gasta, como o céu acinzentado dessa noite. E seguirão sem força os passos da véspera, da semana anterior, a cada dia do que chamam vida, e que tediosamente carregam.

Meus olhos queimam como fogo, o ar numa agonia aperta o peito. Com as mãos no parapeito salto num pulo, giro no ar, os braços tornando-se asas, a cabeça num aperto torna-se oval, pequena, com uma sensação de vertigem. Voando sobre a rua vejo garras onde havia pés, um chão distante, um ruído, um baque, uma poça de sangue.

Luzes se acendem, pessoas na janela olham, e eu, Vampiro de mim mesmo posso agora lançar-lhes meu olhar eterno.

 
 
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