SINCERICÍDIO
Lia A. Falcão
 
 

Era do tipinho que não guardava nem um til como resposta. Se duvidassem, respondia até em braille. Mas respondia ali, na lata. Menina desencabulada aquela. Brigava com as empregadas pelo simples prazer de vê-las desfilar o vocabulário simples e do cotidiano das pessoas do sítio. E não deixava nada sem represálias: na ponta da língua tinha a faceirice de um respostório bem dado e inteligente. Calava a boca até das freiras alemãs que insistiam em lhe ensinar artes manuais num português mal falado e mais ainda mal entendido.

- Menina, "focê" tem de "enviar" e "embuxar" a "lia" na "gúia"! Ralhava a mestra de croché tentando fazer com que a peraltice desse trégua e a menina pusesse uma linha numa agulha!

- Madre, se eu "enviar" e "embuxar" a "lia" na "gúia" tenho medo de apanhar de minha vó! A turma de quarta série vinha abaixo com as risadas pelo destemor daquela criatura...Resultado: castigo de frente prá quina de qualquer parede numa sala trancada. Pronto. Agora podia chorar!

Nem todas as autoridades postas escapavam. O Delegado, em dia de feira, fora vítima contumaz, tentando se passar por autoridade na fila do banco:

- Oxente, e só porque o senhor é "guarda" não espera o sinal do caixa não, é? 'Tá errado! Constrangia e embaraçava o cidadão delegado no cumprimento das leis para todos os mortais...

O Juiz da Comarca, senhor probo e de ilibada reputação, chegou para ficar. Foi uma festa. Morava vizinho da avó da menina e era muito generoso, porém introvertido. Logo caiu-lhe nas graças. Gostava de frutas verdes, de passarinhos, de conversar com crianças e contava estórias dos longes quando ia para o Forum caminhando. Estava selada uma amizade duradoura.

Achava a menina um pouco carecida demais de cuidados especiais, mas isso, naquela época, curava-se com distrações: ofereceu-lhe, de pronto, um curso gratuito de datilografia nas máquinas "Remington" e "Olivetti" que mandara vir da capital para o ofício judicante da comarca.

Aquilo era o equivalente a se oferecer um curso de computação no prédio da Microsoft nos dias de hoje: apenas a glória. Aprender a escrever em máquinas importadas com apenas oito anos era tudo o que a criatura queria e precisava para acalmar os ânimos de adultez precoce. Ficaria eternamente grata ao seu benfeitor.

Pois bem. A professora, uma senhora rigorosíssima de cabelos muito ruivos, dava surras de réguas nas mãos de quem olhasse para o teclado enquanto datilografasse: vez por outra, sobrava para as pequenas mãos da menina.

- O que foi isso, minha filha?

- Foi uma formigona, vó.

Dizia, com uma vergonha imensa por ter sido pega num "flagra" questionável ao digitar com muita presteza "asdfg" e "çlkjh", primeiras lições de qualquer aprendiz de feiticeiro.

Assim, apelidou a professora de Vampira, pois quase tirava sangue das mãos dos alunos e não perdoava nem um til:

- Chlept! Olhe para o texto!

- Chlept! Não desvie a vista!

- Chlept! Olhe a marcação do tempo!

E assim, entre pragas e açoites milimetrados, a Vampira e Mestra foi alçada à categoria de Monstra número um, pela sofrida menina.
Jurava vingança de dia e, de noite, quando rezava, desjurava...

Sabia, porém, que a professora exercia também a função de secretária de Juiz. Pensou: um dia ela vai guardar a régua e eu fico sabendo onde mora a arma daí peço pro meu amigo Juiz mandar ela parar. Mas não deu tempo de arquitetar tal plano. A Vampira ganhou sala nova e tinha chaves. Não havia como seu amigo Juiz tirar a "arma" de lá. Mas um dia ela va se dar mal, lá isso vai! Jurava com os olhos marejados de dor e de vergonha.

Pois esse dia chegou.

Foi o dia da formatura do curso. Como a única criança da turma, entre moças e rapazes concluintes de cursos técnicos e científicos, a menina se destacava tal qual uma boneca.

O Forum estava em festa, pois além da pequena cerimônia, com entrega de diplomas e citação dos melhores trabalhos datilografados, haveria um jantar, tudo pago e oficiado pelo Juiz - chefe da professora e amigo pessoal da menina.

Na saída de casa, a menina foi logo tomada pela mão pelo Magistrado que a conduziu ao local da cerimônia, num misto de orgulho e de senso do dever cumprido. Foi uma verdadeira missão tentar concentrar aquela criatura numa salinha pequena e calorenta, mas tinha valido a pena: crianças aprendem tudo muito mais rápido que os adultos, desde que tenham motivação. Esse era seu lema. Pois.

A aprendiz chegou ao Forum de mãos dadas com o Juiz. Saltitante, pois iria receber o diploma e, quem sabe, se tranformaria ali mesmo numa adulta de grande importância, igual ao juiz que sabia datilografar tão bem, minha nossa senhora! Quem sabe até, a partir dali, a professora somasse algum respeito e pudor ao ofício de palmatória?

A única pessoa a quem a "Vampira" temia como a cruz, era o Magistrado, cuja reputação ilibada, carregava de mais respeito o nome incomum: de origem indígena, chamava-se Irajá. Nisso, até então, a menina não prestara atenção...

Festa pronta, mesa posta, gabinetes arrumados, todos trajados na melhor gala, público de familiares e amigos. Afinal, o Juiz iria falar para todos e o discurso de um homem como aquele era como uma aula de filosofia... Vinha gente de todos os cantos da cidade e dos sítios da redondeza. A mascote da turma, levaria a láurea de merecimento, pois concluíra tal e qual os adultos um curso técnico antes dos nove. Uma faixa e um prêmio. Mas o melhor estava por vir.

Observando as latitudes e longitudes dos presentes, a menina considerou ali sua doce vingança: a professora morria de medo de dar alguma coisa errada na cerimômia que administrara com tanto zelo, portanto, era aí que a coisa iria ficar feia.

A menina, vestido rosa rebordado, sapatos de verniz brancos, laçarote na cabeça, era a única que fazia cara de felicidade antecipada. Lembrara de uma brincadeira que fizeram na sala de aula e quem mais sorriu, no dia, foi realmente a professora. Bom.

O magistrado chegou, cumprimentou a todos e foi logo pedindo uma salva de palmas para sua protegida que de tão miúda, teve de subir numa cadeira para fazer seu discurso de formatura.

Treinara um discurso com a avó, mas ali, naqueles minutos que antecederam a entrega do diploma, seu juízo teceu outro palavreado e foi assim que se fez. A platéia não se continha para que a pequena falasse ao microfone:

- Vocês sabem que eu estou me formando e que só tenho oito anos? Mas sabiam que apanhei igual a estes que têm dezoito anos ou mais? É, a-pa-nhei! Cada vez que a gente errava, apanhava com uma régua de madeira bem grandona e que fica escondida na gaveta do Juiz. Mas não é dele não - é dela! E apontou para a professora. Ele nem sabia, coitado! Ele é muito bom e muito sabido, mas não sabe as coisas que a professora diz e faz! Ela diz também que ele só é rápido porque tem esse nome: Irajá! Por isso as coisas vão rápido por aqui - tuudo que pedem, ela, que é secretária dele, diz: "Irá já!" Tá vendo, como é bom estudar aqui? A gente apanha, mas aprende! Dito isso, levantou o diploma bem pro alto esperando os aplausos ou as vaias...

E foram aplausos que vieram seguidos de gargalhadas! Coroação completa: a aprendiz pôs a Vampira na palmatória. A pobre quase desmaiou de vergonha ouvindo o burburinho e as risadas da platéia comentando o "sincericídio" da aluna mascote! Que enorme disparate! A secretária fazia piadas do juiz e foi desmascarada pela aprendiz! Risadas ecoavam no ar pela saia justa em que ficara a professora e, agora, quem sabe, ex-secretária.

Após um discurso tão pueril, singelo e sem malícia, o Juiz meio desconfiado da inocência da protegida, ajudou-a a descer do pódio, digo, da cadeira, e ali nascera a mais nova Aprendiz de Feiticeira daquela terra: num discurso só botou pra correr a Vampira velha! Nunca mais uma régua marcaria suas mãos de graça!

Muitos anos depois, ela ainda pára e olha o teclado apenas pela liberdade adquirida de fazê-lo sem os rigores antigos: hoje tem por ofício digitar textos e mais textos para magistrados e o faz sem precisar temer a régua. Ironias crônicas: magias dessa vida.

Conta-se que a tal Vampira, até hoje, purga pesadelos infernais sonhando com o discurso que virou "trôco de palmatória".

Irajá, o Magistrado, cujo nome indígena e coração magnânimo ficou registrado na vida de quem com ele teve a honra de partilhar, ensinou o poder da generosidade e da simplicidade à menina que mal e mal, tenta imitá-lo. Ainda muito moço, foi morar com Tupã, onde deve ter recebido muitas láureas e todas as regalias que merece um homem decente e ímpar no céu.

Certamente, o Juiz teve direito também a uma comenda especial pelos serviços prestados a uma certa criatura, miúda e desinocente, a quem ensinara a caminhar por esse mundo sem temor.

 
 
fale com a autora