CORAÇÃO RECHEADO
Luís Valise
 
 

Tão inexpressivo que era capaz de não ser notado mesmo estando só numa sala. Preferia que fosse assim, já que se alguém se aproximasse não teria o que dizer. Não tinha assunto, idéia, interesses. Levava a vida de casa para o trabalho, onde cumpria a mesma função há mais de vinte anos. Ninguém sabia para que time torcia, ou seu signo, ou quantos filhos tinha. Até que, num Primeiro de Maio, a empresa organizou um jogo de casados contra solteiros, um dia antes da festa um funcionário adoeceu, e o time dos casados ficou desfalcado. Compareceu ao local do evento certo que seria convidado para ocupar a vaga, levando mulher e filhos. Foi barrado na portaria do clube, e teve que mandar chamar o chefe de pessoal para liberar sua entrada. O homem perguntou seu nome, a seção em que trabalhava, e, mesmo tendo ficado na dúvida, liberou a catraca ao ver a cara angustiada das crianças. A mulher ainda cochichou “ Benhê, acho melhor a gente voltar pra casa”, mas ele já entrava com o peito estufado de orgulho. Ficou ao lado do campo, fazendo aquecimento, amaciando as chuteiras novas, sorrindo para o olhar brilhante dos filhos. Quando o time dos casados entrou em campo ele foi contando um, dois, três, quatro, até ver que o time estava completo. Parou o aquecimento e conferiu a cara de um por um, até encontrar um estranho. Foi perguntar ao chefe do pessoal quem era aquele baixinho barrigudo, e ficou sabendo que era o cunhado da moça do cafezinho. Quando a partida começou, reparou que o baixinho era manco. Voltou para junto da família, e ao ver o filho mais velho com cara de choro teve uma idéia:

- Quem quer ir ao circo?

As crianças gritaram “Eeeeuuuuu!”, a mulher respirou aliviada, e voltaram para o carro. Ainda recusou a oferta de cachorro quente e guaraná. As chuteiras começaram a machucar seus pés, e logo uma grande bolha brotava em seu calcanhar. Mostrou o machucado para os filhos:

- Viu?, por isso eu não quis jogar, mentiu, plantando um sorriso no mais novo.

No caminho do circo passaram por uma banca de camelô que vendia havaianas falsificadas, e o problema no pé foi resolvido. Viram uma caminhonete puxando uma carreta com um elefante velho e sem presas, pintado de verde. Foram atrás, a criançada fazendo uma gritaria dos diabos, ele buzinando, até chegarem. O circo não era dos grandes, e sua lona estava bem descorada. Um grande cartaz em cores berrantes anunciava “A Menor Vampira do Mundo - Bebe Sangue e Come Coração”. Sua esposa falou “Benhê, eu não gosto dessas coisas”, mas ele já comprava os ingressos. O circo não estava cheio, sentaram na primeira fila das arquibancadas. As crianças comiam pipocas, tomavam Coca-Cola, e batiam os pés na tábua, impacientes. A bandinha atacou, furiosa, os artistas entraram em fila para o centro do picadeiro, deram uma volta e sumiram atrás das cortinas. O espetáculo começou com os palhaços, depois vieram os malabaristas, e os acrobatas. Armaram umas grades, e entraram tigres e leões, irritados por terem sido acordados. O domador estalava o chicote, e os animais obedeciam, cheios de preguiça. O público vibrava com inocência e assobios. O rufar dos tambores anunciou os trapezistas, e até ele ficou nervoso com as piruetas executadas com coragem e saltos-mortais. Um breve intervalo, e o animador anunciou o que viria: Ela, a Mulher-Vampiro!

As crianças tinham o rosto vermelho, os olhos acesos de excitação, e falavam ao mesmo tempo. Ele estava feliz pelos filhos. As luzes se apagaram. Um foco de luz iluminou as cortinas de veludo dourado, de onde surgiu uma pequena figura envolta num manto vermelho, que veio caminhando até o centro do picadeiro coberto de serragem. O raio de luz branca foi substituído por outro, de luz azulada. O manto vermelho foi escorregando lentamente, até revelar a figura mulata que media cerca de metro e meio, vestia um minúsculo biquíni prateado, meias arrastão e botas de cano alto. Instintivamente a mulher vigiou o marido com o canto do olho, e não gostou de ver o sorriso que se abria. A Mulher-Vampiro tinha coxas grossas e firmes. Seus olhos estavam pesadamente maquiados, seus lábios tintos de vermelho-vivo, e dois seios pequenos ameaçavam escapar do biquini. Executava movimentos felinos, passos macios e em câmera-lenta. Passou a andar ao redor da platéia, examinando atentamente o público. As crianças se encolheram quando ela se aproximou. A mulher apertou com força o braço do marido, que apreciava com satisfação o corpo seminu da vampirinha. Ela passou por eles, deu alguns passos, e voltou. Parou defronte a família que se comprimia ao redor do chefe, e olhou o homem atentamente, que sentiu o coração falsear. O foco de luz o atingiu em cheio. Todas as atenções estavam voltadas para ele. A mulher esticou o braço, apontando um dedo de unha longa e vermelha em sua direção:

- Você! Venha até aqui!

A esposa apertou mais seu braço, dizendo entredentes “Vai não, Benhê!”, mas ele estava fascinado por ter chamado a atenção. Pela primeira vez tinha sido notado. Era alguém. Levantou-se, obediente. As crianças choramingaram “Fica, pai”, mas ele marchou firme sobre suas havaianas fajutas até junto dela. Dois violinos desafinavam um lamento cigano. Sentiu seu perfume doce, viu que ela tinha olhos verdes, e a pele sobre os seios estava coberta de pequeninas gotas de suor. A Pequena Vampira passou a mão em seu rosto, e falou com voz forte:

- Eu quero teu sangue, e teu coração! Fecha os olhos!

Ele obedeceu, que era o que sabia fazer. A baixinha deu a volta por trás dele, e vendou seus olhos com um pano escuro. Em seguida começou a dançar com movimentos voluptuosos, encostando suas coxas nas dele, passando as mãos sobre seu peito e suas costas, enquanto arreganhava os dentes, expondo dois caninos de plástico. As crianças se agarravam na mãe, que dizia baixinho “É só brincadeira, é só brincadeira.” A pequena morena abraçou o homem e falou baixinho, sem ninguém perceber “Eu vou morder teu pescoço de mentirinha. Você finge que desmaia, cai no chão e fica quieto”. E assim fez: ficou na ponta das botas, colou seus lábios no pescoço do homem, que estremeceu, e começou a curvar as pernas, caindo devagar, até ficar deitado na serragem. Aí ela desabotoou a camisa dele, a luz diminuiu, e apareceu ninguém sabe de onde um coração de borracha, cheio de tinta vermelha. O “sangue” escorria por entre os dedos da mãozinha. Ele estava com os olhos semi-cerrados, e viu quando ela fingia comer o coração. A platéia fez “Oooohhhh!”, as crianças chamaram pelo pai, a mãe disse “É só brincadeira, é só brincadeira.” As luzes se apagaram. Sem medir as conseqüências, ocultado pela escuridão, ele agarrou a cabeça da artista e deu um beijo na boca vermelha, molhada de tinta. Ela arregalou os olhos, muda de espanto, e quando a luz voltou ele viu que seus dentes eram mais brancos que os de plástico. Ela ainda estava ajoelhada, a boca borrada de vermelho, e ele fingindo de morto, sua boca também manchada. Foram muitos aplaudidos.

No carro, as crianças faziam a maior algazarra. Calada, a mulher via com o canto do olho a marca de batom no pescoço do marido, seus lábios manchados. Ele não dizia nada, olhava fixo para a frente. O filho mais velho perguntou:

- Sentiu dor no coração, pai?

O homem lembrou dos olhos verdes, das coxas grossas, da boca vermelha, e mentiu:

- Não, filho, ela tirou devagarzinho.


Na manhã seguinte ele saiu para o trabalho, e não voltou. A mulher ainda foi até o circo, mas nada havia além do terreno baldio. Em casa, quando punha as crianças para dormir, ouviu do mais novo:

- O pai não volta mais, mãe?

- Acho que não, filho. Mas não importa, ele já não tem mais coração, mesmo.

O argumento fez com que todos dormissem conformados. Nunca mais foram ao circo.

 
 
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