SANGRIA
Maria Cláudia Mesquita
 
 

Helena carregava aquele caderno pra baixo e pra cima. Ou seria o caderno a carregá-la? Na verdade não tinha forças para resistir. Sentia-se obrigada a levá-lo na bolsa, sempre. Sua energia eram aquelas páginas. Não era mais Helena, era Ana, Maria, Pedro, Fernando, Clara ou qualquer nome cheio de inúmeros silêncios e símbolos. No escuro da bolsa levava seus "eus" virando um livro. Na capa, escrevera uma palavra em tinta vermelha. Durante o dia, em todo tempo que sobrava, tirava o livrinho da bolsa e pingava uma letra, uma palavra ou um parágrafo. Passou a não se importar com as situações em que se via a esperar uma consulta médica, uma reunião ou mesmo uma fila de banco. Desligava-se do mundo e passava o tempo todo a serviço dele. Estava encantada. Não ouvia mais o telefone, não escutava os sons ao seu redor, não almoçava mais com os colegas do trabalho, não viajava com os amigos. Não queria ter ninguém por perto. Não comia, alimentava o caderno. Enfraquecera. A anemia tomou conta corando sua face de olheiras enquanto as letras ganhavam cada vez mais vivacidade. Começou a, trocar nomes, esquecer de pagar as contas, perder a hora para o trabalho, sair sem pentear os cabelos. Não se concentrava mais nas coisas do dia-a-dia. Até o dia em que parou definitivamente de falar. Boca seca, respiração ofegante, olhos ainda mais pesados. O pulso vivo, dentro da escuridão da bolsa, vivente.

Em uma nova manhã Helena não conseguiu sair de casa. Seu corpo estava cansado, com ares de surra. Mas, diferente do esperado, ficou estranhamente feliz. Não abriu as cortinas do quarto. Abriu a bolsa. Submissa, pegou o caderno, a caneta vermelha e foi sugada durante o dia todo, entregou tudo o que tinha, até a última página.

Escritora, até a eternidade.

 
 
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