ARRASTÃO
Luís Augusto Marcelino
 

Por uma dessas artimanhas da vida fui parar na portaria de um prédio na Zona Sul. Não faço idéia de como seja a Zona Sul da sua cidade, mas a minha é lugar de bacana. Os brancos prevalecem. Ora de origem italiana, ora de portuguesa, de espanhóis. São eles quem residem na maioria dos apartamentos de luxo do "Condessa de Lyon". O prédio é bonito, suntuoso, onipresente. Onde eu moro não há edifícios como aquele. Creio que o preço do elevador do Condessa de Lyon seja suficiente para pagar uma boa parte dos apartamentos da CDHU. Mas não posso afirmar nada, não fiz os cálculos com precisão.

Estudei até onde minhas necessidades fisiológicas me permitiram. Era comer ou estudar. Comi e sobrevivi, mas me tornei porteiro, embora sempre tenha me dedicado à leitura de jornais e revistas pornográficas. E o diabo é que sou um tremendo bunda-mole. Não posso ver sangue. Arranhões me causam vertigens. Uma arma de fogo a 500 metros de distância me provocariam desmaio, certamente. Fazer o quê? Precisava continuar comendo.

Os bandidos chegaram no carro de uma moça do 17º andar. Não era feia, a moça. Mas também não era bonita. Renderam a mim e a outros dois seguranças, Valdir e Valnei. "Fica na manha, viado!" - gritou um deles. Eu não era (e não sou) viado mas fiquei na manha, como ele ordenou. O arrastão estava prestes a se consumar. Carregaram-nos direto para o vigésimo quarto andar.

- Não tem ninguém aí a essa hora, seu moço! - anunciou Valdir.

- Quem te perguntou? - retrucou um dos bandidos. Arromba essa p...! Agora! Neste momento! Now, son of a bitch!

Fiquei entusiasmado com a desenvoltura lingüística do meliante. E com seu terno italiano. Alertei-o sobre o alerta sonoro. Ele retrucou que minha construção "alertar sobre o alarme" era rudimentar. Ok, concordei.

- Melhor seria: atenção para o alarme, cavalheiros! - ele disse.

- O alarme pode disparar, senhores! - retruquei.

- É, daria pra passar. Mas me alertar para o alerta? Terrível.

O sujeito do terno italiano me perguntou se eu já tinha lido Kafka. Respondi que sim. "Ótimo, ótimo..." - ele avalizou. "Gostou mais de "A metamorfose" ou de "O Processo"? Respondi que era apaixonado por "Cartas ao meu pai". Hummmmm... ele ponderou. "Arromba essa p..., c...!!!!!!" Olhou-me com cara resignada, enquanto dava as ordens. E argumentou que, se não fosse daquela maneira, os comparsas não o entenderiam.

- Tolstói?

- Apenas uns trechos esparsos - respondi.

- Os russos são complexos...

- E gostam de vodka - completei.

- É. Vodka.

Num espaço de duas horas foram arrombados três apartamentos. Dólares, Euros, Reais, peças de cristal, camisas do Corinthians (autênticas - cheirosas e antitranspirantes) e um quadro.

- Monet ou Rafael? - perguntou-me.

Olhei cuidadosamente. De fato, as cores fortes e vivas remetiam ao Resnascentismo. Mas havia naquela pintura algo inusitado, diferente. A assinatura do quadro era ilegível. Arrisquei:

- Monet!

- Mata o cara! - ele ordenou.

O tiro não ecoou como havia de ser o normal. Havia um silenciador na arma. Ele olhou novamente o quadro e se dirigiu à moça raptada. Ela tremia.

- Detesto gente que não entende de arte.