CATREVAGE
Raymundo Silveira
 
 

"O tempo não é linear, mas curvilíneo".
(F. Nietzsche)

Estou atrasado. E há pessoas impacientes. Uma amolação, esperar alguém se retirar dos seus domínios. Sou uma exceção. Um trambolho. Um quem é? seguido de não sei! Pois o meu atraso é uma tragédia. Hóspedes incomodam. Mas a expectativa da breve estadia resigna os anfitriões, a ponto de abrirem mão do próprio conforto. Já tinha de ter viajado. Como os da casa contavam com isso há muito tempo, cederam tudo: a melhor comida, a melhor bebida, as melhores acomodações. Não tenho culpa: tarda o avião da minha reserva. E tardará ainda mais. A sucessão de entardeceres, anoiteceres, e amanheceres, causa-me a sensação de me encontrar num carrossel atemporal. O tempo passa, sim, mas retorna sempre ao ponto de partida. Assim, jamais canso de esperar; só de des-esperar. Por que não fui para um hotel? simples: não teria como pagar. Não! Meus conseguimentos não foram dissipados, mas investidos em energia. Energia vital. Proto-agonizo uma invasão desintencional. Portanto, sem o ônus da lei. Delinqüente inimputável. Para não causar mais desgosto e evitar constrangimentos, só saio dos meus aposentos em raras ocasiões. Essas circunstâncias irritam os hospedeiros, pois não podem sequer se queixar. Não escuto reclamações diretas, contudo, percebo o mal-estar. Como hóspede, não deveria pretender participar dos assuntos privativos da família. Mas não seria tão marginalizado em situações normais. Semblantes de agressividade, olhares de rancor, rumores de vaitimbora... são rotinas do dia-a-dia. Tentei contemporizar. Ansiava por ouvir as sinfonias da convivência. Desútil. Mal escutava os prelúdios da indiferença. Passava por es(cor)pião sem desconfiar disso. Coagido a me enrodilhar um pouco mais dentro da concha. Incomunicação quase absoluta. Passei a tomar sozinho as refeições. Não na calada da noite, mas nas noites caladas. Escutando, eu e a minha estraneidade, o ruído do silêncio. Estou tão angustiado que chego a sentir saudades do que nunca aconteceu. Tenho de me adaptar. Para tanto, tento escrever. A arte é a saída para as contradições da condição humana. E a literatura é a simbiose da arte com a imaginação. Descrever a vida, por mais terrível que ela seja, é retirar-lhe boa parte do terror, preservando e amplificando a sua beleza. Por mais vestigial que esta se apresente. O sol das idéias aquece, com o calor das palavras, o frio da desgraça emocional. Logo, escrever a minha história é a segunda e última alternativa. Já cogitei da primeira: antecipar o vôo, transferindo o bilhete para outra companhia. Só existe uma. Há bastantes vagas. Mas se trata de uma aventura; uma empreitada de altíssimo risco. Confesso a covardia. Sinto muito medo. Não de um desastre aéreo, este seria instantâneo. Meu pavor é o de adoecer dentro do avião. Não há garantia de socorro. Tampouco, não é improvável ser abandonado pelo caminho. Acontece sempre, quando qualquer passageiro tem um mal subitâneo a bordo de uma aeronave desta empresa. Não é um temor infundado: já aconteceu comigo. Rezei infernos e blasfemei paraísos. Sobrevivi por acaso. Ainda tomo sustos. Que já não assustam tanto. Susto-os me valendo de desvaliuns. Tenho de admitir temer a volta do mal súbito, tendo em vista a corda bamba estendida entre a minha água furtada e a do edifício em frente, na qual me equilibro. Embaixo inexiste rede de proteção. Também, não temo a fatalidade, e sim, seqüelas de acidente. Antes, o quarto era espaçoso e confortável. Aos poucos, foi ficando pequeno. Hoje, contém muitas catrevages. Todo refugo da casa está sendo largado aqui. Às vezes, entra alguém para fazer limpeza. Então, me deito. Associo o deitar ao sono. Dormir é a quarta maravilha do mundo da vida. Como velar é a quarta miséria da vida do mundo. Dormindo, o tempo pára. Parando, nos tornamos coisas. Coisas não sentem, pois só subsistem na perpetuidade do momento. Uma noite de insônia nos torna diferentes e indiferentes, pois remanesce um desconforto básico, curável apenas com outra noite bem dormida. Estando deitado, não durmo necessariamente, mas só em associar o sono a essa posição, me sinto aliviado do incômodo de estranhos no meu cômodo. Ontem pela manhã amanhava manhas na escrita deste texto e fui surpreendido. Não houve tempo de me deitar. Só que dessa vez não se tratava de limpeza. Quatro homens traziam um armário, depositaram entre mim e a porta de entrada / saída, e saíram. Um terço do espaço - já exíguo - foi ocupado. Sinto-me quase emparedado. Poderia sair, mas qual seria a serventia? Caminhar pelas ruas da manhã e bordejar as da tarde, só trariam tristura e abandono quando chegasse a hora de rastejar de volta pelos becos da noite. Por isso, em vez de sair, apelo outra vez para o dizimento da minha desventurosa aventura. Escrevo cada vez mais demais. Existe um outro inimigo. Menos violento, porém mais insidioso. Mais sorrateiro. Só aparece nas desconsolações. Desconveniente acompanhante desde a juventude, suas conseqüências são pouco nefastas para o corpo, entretanto aniquilam a alma. Trata-se de um fantasma. Até hoje logrei fustigá-lo à custa de muita determinação. Conheci várias vítimas do seu assédio. Dá dó, assistir aos desmoronamentos. Há algumas horas os quatro homens levaram o móvel de volta. Como vêem, essa é uma história curiosa. O mais curioso de tudo é que sou o personagem principal de um drama realista, levando uma vida real surrealista. Pois estou na minha própria casa imprópria. Sou eu quem a mantém. Sozinho. Não obstante os meus vultosos investimentos em energia vital...

Não entendo o que se passa. Cuidava ser o armário, mais uma catrevage posta ali com dois intuitos: me atormentar e se verem livre dela... A primeira hipótese não está afastada... Acabam de deslevar a catrevage...