O ÚLTIMO FADO EM LISBOA
Raymundo Silveira
 
 

Subiu a escada do Boeing respirando medo. Uma comissária o conduziu ao assento. Enquanto ela punha o cinto de segurança, sentiu que ia ser executado, pois aquela operação demorou uma eternidade. Parecia não haver uma medida que se ajustasse ao corpo magro. Era o seu primeiro vôo. Cada poltrona era uma cadeira elétrica. A fuselagem, uma câmara de gás. Então, por que ia? Porque um antropólogo famoso teria dito que avaliava a inteligência média de um brasileiro, pelo grau de amor que este tivesse a Portugal. E ele não queria ser considerado pouco inteligente. Ansiava por reconhecimento. Tremelicando de pavor, mas foi.

Do lado direito uma mulher muito gorda mascava chicletes. Eram dez da noite quando o avião decolou e o jantar foi servido. Até conseguia mastigar, mas não engoliu nada. Quatro horas mais tarde raiou o dia. Veio o café da manhã. “Não vai tomar o seu quebra-jejum?” Perguntou a gorda. “Posso, então, pegar pra mim?” Tinha jantado há poucas horas. Acabara de tomar o seu café. E ainda chamava de quebra-jejum o de comer rejeitado pelo vizinho.

Ao desembarcar, passaram o controle de Passaportes e descobriram que iam ficar no mesmo hotel: o Eduardo VII. Ela se ofereceu para ser a sua guia. Cinqüentona, que era, passava agora sua aposentada vida numa ponte aérea entre a sua cidade e Lisboa. Dizia que adorava Portugal, por motivos históricos. Talvez fosse também. Mas o principal era se empanturrar de comida gostosa, longe das pessoas, que viviam falando de sua gordura e mandando fazer dieta.

Era julho, tempo de grande calor por aquelas bandas. E o almoço tinha sido no Rossio. No restaurante João do Grão. Comeram, quer dizer, ela comeu: bacalhau, arroz de marisco, peixe espada e mão de vaca. Tudo regado a vinho verde. A sobremesa, pastéis de nata. Ele apenas provou. Na verdade , começava a se interessar por aquela espontânea e desinibida mulher. Ela fazia do ato de comer um ritual de prazer tão intenso ,que despertou nele uma curiosidade estranha .Começou a imaginar essa gula , essa entrega sem freios numa situação mais íntima. Dileta gordinha. Mesmo com a barriga em tempo de estourar, não media esforços pra agradar o companheiro. E, naquela tarde, visitaram as principais atrações da capital portuguesa.

Despediram-se na entrada do hotel. A gorduchinha feliz , como não se lembrava de ter sido. Exausta. Tirou apenas os sapatos, deitou-se... A vida não tinha sido carinhosa com ela. Certo, seus objetivos, alcançou. Tudo à custa de enorme esforço. Graduação, pós-graduação, chegou a culminâncias acadêmicas. Sempre através de concursos disputadíssimos. E nunca poderiam acusá-la de dispensar favores aos poderosos. Quase sempre homens. Previsíveis, animalescos, tendenciosos homens. Que simpatizavam com as candidatas, menos por causa dos valores intelectuais, do que pelos dotes físicos. Não! Chegou aonde chegou apenas pelo seu esforço. Pela sua competência.

Sempre dificuldades e muitas frustrações. Obesa desde a mais tenra idade, cresceu e amadureceu sofrendo na carne e na alma o preconceito e a discriminação. Que se lembrasse, homem algum jamais a amara. Ou sentira atração por ela. Vaidade também nunca a seduziu. Pelo contrário, sua auto-estima sempre esteve muito abaixo do nível do mar. Comprar uma roupa nova era um tormento. Uma obrigação a cumprir. Jantar fora, um constrangimento terrível. Sentia-se o foco das atenções. Como se fora uma criminosa ou uma ET...

Pensar assim nas tristezas e na solidão deu um vazio na alma e uma vontade de alguma coisa, que ela não sabia o que era . Quem sabe um chocolatezinho . E já ia abrindo a geladeirinha para sondar as alegrias ali contidas ,quando o telefone tocou. Era o seu “imponderável” e fortuito companheiro. “Comprei duas entradas para o Teatro de São Carlos. Estão apresentando Don Giovani. Também reservei dois lugares na ‘Severa’. O que acha?” Por alguns segundos a perplexidade a emudeceu. Era a primeira vez que um homem a convidava... A primeira vez que tomavam a iniciativa de lhe dispensar tamanha atenção. Mas logo se recuperou. “Muito gentil da sua parte. Acho bom demais”. Mentira. Não era bom demais. Era encantador, maravilhoso... Estupendo, como gostam de dizer os ibéricos. Só não entendia como ele adivinhou que ela adorava Mozart. E Don Giovani era a sua ópera predileta.

Chegaram à casa de fados à meia noite. Foram recebidos por seis casais a caráter. Uma mesa privilegiada, frontal aos músicos. Enquanto as guitarras emitiam o seu som dolente, um cantor português charmoso, desses que ganham todas as mulheres, cantava :

“Chorai, fadistas, chorai,
Que uma fadista morreu,
Hoje mesmo faz um ano
Que a Severa faleceu”.

Apesar da tristeza da canção, o ambiente, os aplausos e sobretudo, o vinho favoreciam um clima de romantismo. Para o casal brasileiro, no mundo só existiam eles dois. Ele a abraçava, beijava e a olhava, embevecido. Existe uma mágica que torna a mulher amada atraente, enfeitada . Alguma coisa inexplicável , uma luz. A gordinha irradiava uma energia encantadora. O jantar foi servido. Ela mal olhou o que continham as travessas. E o fadista, um pedaço de mau caminho , com aqueles olhos verdes e aquela voz sensual, não parava:

“Morreu, já faz hoje um ano,
Das fadistas a rainha,
Com ela o fado perdeu,
O gosto que o fado tinha”.

Se os versos continham um lamento, eles nem percebiam. Para ele, então, soavam como os de Romeu recitados sob o balcão de Julieta, em Verona: “But soft! What light throug wonder window breaks! It’s the east, and Juliet is the sun!"

O que o magrinho jamais podia imaginar era que o fadista não desviava o olhar da sua “Julieta”. E que ela, discretamente, correspondia. Quanto mais cantava, mais ele parecia deixar-se atrair pela gordinha charmosa. E no cantar insinuava paixão. Prometia delícias. Mal percebia que os versos falavam de morte:

“Chorai, fadistas, chorai,
Que a Severa se finou,
O gosto que tinha o fado,
Tudo com ela acabou”
.

Quando terminou, acenou discretamente , chamando a mulher para seu camarim. E se retirou. “Querido, vou ao toalete. Volto logo”. Não voltou. O magrinho esperou meia hora. Achou estranho. Foi procurar. “Ô Pá, estás a procurar a senhora ? Não o faças mais. Ela saiu com o Joaquim Manoel. Duvido que o nosso melhor fadista ainda volte cá a esta hora da madrugada”.