SALVADOR DALI
Hugo Carvalho
 
 

"Como posso querer que meus amigos entendam
as coisas loucas que passam pela minha cabeça,
se eu mesmo, não entendo?".
Salvador Dali (1904-1989).


Ouvindo os Beatles, no escuro, quero ver nos céus, nuvens se transformando em corcéis alados sobre azuis profundos e intraduzíveis; quero imaginar palmas de Santa Rita, rosadas, serem mastros e velas da nave rodeada por minúsculas canoas feitas de pétalas da mesma flor.

Fumando meu charuto, quero conceber, jorrando da boca de um vulcão, a lava se fazer mulher incandescente, de peitos nus, braços estendidos e mãos espalmadas para o céu tentando apoiar a lua; quero converter a areia da praia no meu leito, proteger meu livro com meu corpo e me cobrir com o diáfano manto das ondas desmaiadas.

Ouvindo os Beatles, quero ver cavalos (des) feitos de neve galopando as encostas geladas do Himalaia e com elas se confundindo; quero, para mim, a luz da vela que, por ser eterna, nunca se apaga e faz de si brotar um vulto de mulher, em sua resplandecente chama.

Fumando meu charuto, quero quixotescos moinhos de vento de pás transformadas em borboletas enormes, multicoloridas; quero ver o cabelo louro-fogo de uma mulher se liquefazer em transbordante cachoeira azul-gelo.

Ouvindo os Beatles, imagino homens segurando uma grande rede circular, fluida e ondeada como as águas do mar, em prontidão para a vinda de um golfinho lá dos céus e desejo que, no mesmo mar, a crista das ondas se converta em mulher-espuma-branca, entrelaçada a um homem-rochedo-negro, se fazendo dois amantes.

Fumando meu charuto, não quero ter medo de olhar o firmamento e ver furtivas mãos tentando abrir uma brecha entre as nuvens para lançar um olhar, curioso e impertinente, sobre as coisas que escondi, varrendo-as para debaixo do tapete de água na praia; quero imaginar o quanto restou da árvore cortada, a canoa e os remos na qual se converteu e enraizados nas curvas de nível da terra, por um homem nu remada, em direção ao nada.

Ouvindo os Beatles, fechando os olhos, quero para mim a mulher que abraça, entre as pernas, o livro de contos eróticos do Marques de Sade e que dentro dele, quando aberto numa página qualquer, ela se transforma em borboleta, enquanto tento decifrar as acrobacias, opostas e simultâneas, de supersônicos no céu e de golfinhos no mar. Quase iguais, quase peixes, quase aviões.

Fumando meu charuto, no escuro, tento entender o ovo que se parte ao meio e sua gema que se transforma em sol e claridade, para iluminar mil borboletas que borboleteiam nas velas de um barco sem timão. A mesma luz que é soprada de uma vela divina, protegida por mãos celestiais e que, formando um cone iluminado, mostra o caminho para o barco perdido em meio às ondas encapeladas da procela.

Silêncio!

Acendam as luzes!

Desliguem os Beatles!

Outro charuto, por favor.

Quem me dera entender Dali.