POR DENTRO DO FORMIGUEIRO
Chico Franco
 
 

De repente, acordei dentro de um formigueiro. Eram saúvas, se não me engano. Estava calmo apesar de inerte, e à mercê do bichos. Me olharam com carinho e me trataram como se fosse uma delas em estado latente. Estado de pupa ? Acho que é. Eu estava quietinho, observando tudo com os olhos do espírito, e fui, de fato, muito bem tratado. Saúvas p'ra lá e p'ra cá. Tudo tranqüilo e harmônico. Ao fundo, um vulto negro, enorme. Se aproximou vagarosamente. Não consegui distingui-lo, mas mesmo assim, não me preocupei, ciente de que estaria em boas mãos.

Uma aranha. Uma baita aranha. Só percebi quando ela já estava bem próxima. Percebi também que era uma fêmea, uma mãe. Relaxei de vez. Chegou perto, me olhou, observou meus contornos, meus traços, coçou o nariz, e percebeu que eu era diferente. Mas também não fez diferença. Me cobriu, se certificou que eu me sentia bem, e saiu balançando aquele traseirão peludo sem dizer nada. Estava para pegar no sono quando escutei uma voz firme e com um pouco de eco :

- Só ser.

Quem disse, eu desconfio, mas não pude sentir a firmeza da certeza, pois imediatamente, meu cérebro reagiu e começou a esquadrinhar e tentar decodificar a mensagem. Foram momentos desconfortáveis, pois eu não estava ali para aquilo. Não sei se existe frase mais curta que o "Só ser" que escutei, mas foi suficiente para desencadear um processo íntimo-mental incendiário, que só se arrefeceu quando intuí seu sentido. Mais simples não poderia ser. "Só ser".

Só ser significava não pensar.

Só ser significava não fazer.

Só ser significava não ter.

Só ser significava não querer.

Só ser significava não ter que.

Só ser.

Como foi difícil me colocar nesta condição. Consegui me sentir apenas por um momento muito breve neste estado. Uma dádiva. Nirvana e paradoxo. Daqui a pouco me transformo em formiga e tudo passa. Passaria, se eu fosse uma formiga. Mas, não sou e não consigo só ser por muito tempo. Aliás, só consigo raramente nalguns lampejos de consciência maior, e depois, o que me resta, é apenas a doce e melancólica saudade do que fui. Como foi bom !

Que lição !

Obrigado meu Deus !

Agora, inverto o foco e afirmo :

Bró, eu li você de novo, e li nos seus olhos, e percebi que você tem exatamente o mesmo tipo de saudade que eu tenho. Saudade de só ser. Não se faça de desentendido(a). É com você mesmo que eu estou falando. Isso mesmo. Você que está me lendo neste instante. E não me venha com a super lógica superior-humana de que as formigas trabalham, constróem e agem por instinto. Elas simplesmente são trabalho, são construção, são ação e são instinto. Ponto. Eu estive lá e sei; e neste aspecto, me envergonho de ser como você, humano. Assumiu ?

Bom, então vamos voltar a falar da saudade de só ser. Isso faz uma falta danada. Lembra como era gostoso ? Não pensar, não fazer, não ter( possuir) , não querer e não ter que... Que delícia !

Apenas ser, humano que seja, mas somente ser. Coisa que não somos a muito tempo. Nos perdemos na longa estrada da vida... É dura a reflexão, mas sinto que nos ensinaram errado quando nos puseram como dependentes de um deus superior e fora de nós mesmos, bem longe, e bem lá no alto. E para completar, dependentes também de intermediários e atravessadores entre nós e Ele. Livre-arbítrio ? Coitadinho. Só mesmo como verbete de dicionário. Estamos sendo castrados do só ser à milênios. Faróis, Caminhos, Luz, Iluminação, Iluminados sempre houve. O que não houve foi competência da nossa raça em seguir os verdadeiros Faróis e os grandes Iluminados (sem hierarquia, interpretações e nem preferências, por favor).

Muito pesado ? Pode ir assistir televisão.

Dá para encarar ? Vamos em frente.

O fato é que com estas carências todas, não sei se conseguiremos reverter a triste situação que vivenciamos no nosso planeta. Por mais força que as energias do bem estejam fazendo, a barra está muito pesada. Não dá para tapar o sol com protetor solar GP 1 Bilhão. Pura incompetência nossa (do bem). Sucesso quase garantido do outro time (do mal). Jogo sujo e desigual, principalmente por causa de terceiros (a turma de cima do muro), que pesam muito na balança.

Quem é do bem ? Em maior ou menor escala, todos. Porém, classifico os do bem como aqueles que ainda sentem saudade de só ser. Aqueles que ainda tem um pouco de conteúdo e vergonha na cara para perceber a nossa tragédia planetária, e de alguma forma se dispõe a lutar contra. Da minha parte, vou morrer lutando.

Quem é do mal ? Também todos somos em algum grau. Porém qualifico aqueles que abusam do poder das hierarquias, abusam do poder do vil metal e abusam da inocência, da ignorância, da infelicidade e da fragilidade de qualquer parceiro planetário, seja ele animal, vegetal ou mineral, sólido, líquido ou gasoso.

Quando eles, do mal, descobrirem que os inocentes, ignorantes, infelizes e frágeis somos nós mesmos, será realmente tarde. E por último, quem é a turma de cima do muro ? São aqueles que, além de não sentirem a mínima saudade de só ser, já foram totalmente sugados pelos do mal e vegetam, como zumbis, alimentados pela esperança da vida eterna, ou num prato de comida, ou num próximo capítulo de novela, ou na compra de alguma tralha novinha em folha, ou ainda, na conversa apaixonada de alguma liderança burra e bico-doce.

Loucura ? Não. Eu chamaria de lucidez pré-desencarnação.

Amanhã eu vou morrer. E você também vai (a velha e única certeza, lembra ?) Então eu resolvi assumir que amanhã eu não estarei mais aqui. Encarei o medo e pedi ao Deus que eu mal e porcamente consigo entender, para me dar uma mensagem de luz e de esclarecimento, sobre um monte de dúvidas que eu ainda tenho, e que não queria ir embora sem esclarece-las, além de mais algumas coisas sobre a minha própria vida. Foi aí então, que eu acordei no formigueiro.