ENCANTADO
Luís Valise
 
 

Etevaldo saiu da pensão vagabunda e atravessou a rua rumo ao bar. O calor era sufocante, embora o dia mal começasse. Dentro do bar um ventilador de teto espalhava o mormaço. Não havia ninguém atrás do balcão. Pegou um ovo cozido, quebrou a casca azul no mármore do balcão e salpicou o sal do saleiro imundo. A massa branca e amarela grudou no céu da boca ressequido pela ressaca, e teve que usar a ponta do dedo para solta-la. Um mulato gordo e baixo veio dos fundos do bar limpando as mãos no avental cinza. Entrou para dentro do balcão e se aproximou, olhando Benedito por trás dos olhos inchados:

- Vais querer o quê?

- Uma cerveja. Preta. Etevaldo gostava de café-da-manhã reforçado.

A cerveja gelada ajudou a engolir o ovo duro. Embora o bar estivesse vazio, Etevaldo abafou o arroto com a mão em concha. E encomendou:

- Prepara aí três sanduíches de queijo, pra viagem. E três copos de café com leite.

A cerveja estava no fim quando o moreno aprontou o pedido. Só então Etevaldo explicou:

- Eu sou o chefe do conjunto Cigarette Blues que vai tocar esta noite aqui. Desconta do cachê. E saiu levando o lanche das cantoras.

A situação estava negra, o pagode e o funk dominavam os bailes e as rádios, e músicos mais refinados como eles não tinham espaço, por isso aceitavam os convites que surgiam sem outras exigências que não o pagamento. Quando o empresário disse que surgira um convite pra tocar no Encantado, a única pergunta que fizeram foi:

- Onde fica isso?

- Entre Méier e Madureira. Ao menos ficava no Rio de Janeiro, pensaram, ao receberem as passagens de ônibus. O empresário deu o endereço da pensão onde pernoitariam, e o nome não era nada animador: Pensão do Ali-Babá.

Mimi acordou primeiro, e agradeceu o guitarrista pela gentileza dos sanduíches. Vestiu um roupão e saiu para o corredor, em busca do banheiro. Etevaldo trocava as cordas da guitarra sentado na beira da cama, e de vez em quando espiava Marina e seu sono tranqüilo, seus cílios longos e curvos, sua boca de sabor ignorado. Amor secreto que gritava bem alto em seus solos de guitarra.

Quando todos estavam comidos, lavados e trocados, Etevaldo propôs ensaio no quarto mesmo, e as moças concordaram porque fazia muito calor para reclamar. Marina disse que gostaria de cantar uma música nova. Etevaldo preparou a guitarra, e ela deu o tom:

- Lá-menor, Billie.

Alfredo vivia de jogatina. Tanto fazia sinuca ou carteado, contanto que encontrasse trouxas de quem tomar dinheiro. Aplicava suas manhas e artimanhas sem ninguém notar os truques e roubos. Barba sempre por fazer, roupas folgadas em desalinho, morava na pensão do amigo Ali Babá, e pagava quando podia. Amigo é pra essas coisas. Acordou e não precisou abrir a janela pra saber que lá fora estava um inferno. O suor umedecia o travesseiro e a camiseta. Saiu para o corredor com a toalha no pescoço e foi direto para o banheiro, ansiando pelo chuveiro de água fria. Tinha gosto de conhaque na boca, e os dedos recendiam nicotina. Banho tomado, vestiu um par de calças de linho que já fora branco, sapatos bicolores, jogou no pescoço suas correntes de ouro e não abotoou a camisa. Atravessou a rua, e entrou no bar do Amaro. Quebrou um ovo cozido no balcão de mármore, e pediu um suco de laranja. Com vodka. Alguns homens levavam as mesas de bilhar para o barracão dos fundos. Alfredo estranhou:

- Quê é isso, Amaro? O mulato enxugou o pescoço com o pano cinza:

- Hoje à noite vai ter música ao vivo.

O combinado era iniciar o show às nove da noite, então às nove e meia Etevaldo atravessou a rua com a guitarra na mão. Parou na porta do bar, examinou o ambiente com seu olhar de puta-véia e não gostou do que viu: muito homem sozinho. Sua experiência dizia que homem sozinho, bebida e música romântica não acabam bem. Foi andando entre as mesas até o palco improvisado: chapas de compensado sobre caixas de cerveja vazias. Ligou o fio da guitarra na caixa de som. Fez um acorde. As vozes se calaram, e pares de olhos curiosos iluminaram sua vaidade. Mais dois acordes, enquanto decidia com qual música abriria a noite. Sentia uma melancolia dos diabos. A lembrança de Marina, seu olhar líquido e sua boca de fruta vermelha acabaram de amolecer seu coração, e ele começou com Summertime. Notas longuíssimas, chorosas, plenas de sentimento. Os pagodeiros e o pessoal do funk foram pegos de surpresa. Esqueceram de acender cigarros, de dar goles nas bebidas, hipnotizados pelo calor e pela sensualidade que brotavam dos dedos do guitarrista. Etevaldo ficou mais tranqüilo.

No quarto da pensão as cantoras terminavam a maquiagem, e antes de sair benzeram-se discretamente. De noite as mulheres ficam ainda mais sozinhas.

Alfredo encheu a mão com uma porção generosa de perfume, passou no pescoço e no peito. No espelho viu o reflexo dos cordões de ouro entre os pelos do peito. Abriu mais um botão da camisa. Não era nem solteiro nem casado, tinha um caso antigo, antiguíssimo, e só não se casava para não estragar o romance. Tinha inventado uma desculpa, morte de um grande amigo em outra cidade, para não encontra-la naquela noite. Além da titular, Alfredo tinha outro cacho complicado com uma morena cheia de corpo, a Laurinda, que talvez aparecesse no bar do Amaro. Saiu do quarto, e no corredor deu de cara com as três cantoras. Não sabia quem eram, e depois de rápida avaliação, decidiu-se pela baixinha de cabelos curtos. Ia dar uma chance a Marina.

Atravessaram juntos a rua, elas na frente, ele atrás, olhos nas pernas bem torneadas do amor do Etevaldo. O bar estava silencioso e carregado de fumaça. O improviso em Summertime deu início à segunda parte, as cantoras subiram ao palco e tomaram seus lugares. O volume da música diminuiu, uma delas se aproximou do microfone e anunciou:

- Na guitarra... Billie.

- Primeira voz... Marina.

- Segunda voz... Mimi.

- E eu.

Alguns aplausos tímidos, alguns "ssshhhh", a baixinha se aproxima do microfone e aproveita a nota certa:

I've got you under my skin
I've got you deep in the heart of me.

Alfredo se encanta com Marina, e não nota que Laurinda o fuzila com o olhar. Os pagodeiros e os funkeiros estão siderados pela delicadeza da melodia, com a letra que cada um imagina e cria para si, com o suíngue do Billie e das três crooners. Cole Porter, Gershwin, Rogers & Hart baixam no Encantado.

O show acaba entre palmas, gritos e assobios. É quando a voz do Alfredo ordena:

- Quietos! Quietos! E quando se faz silêncio, ele surpreende:

- One for the road: The shadow of your smile. E ilumina com um sorriso o olhar de Marina.

Etevaldo não gosta do que vê. Mas ali ele não é Etevaldo, ali ele é Billie, então executa uma introdução em andamento rápido, mas Marina ergue a mão e determina o ritmo, que vem amoroso:

The shadow of your smile,
when you have gone.

Canta olhando direto pro Alfredo, só pra ele e seu sorriso malandro.Quando a música termina, desce do palco em caminha em sua direção. Após rápida conversa, vão em direção ao balcão e pedem bebida. Etevaldo desliga o equipamento. Mimi se oferece para ajudar, mas ele nem nota. Agarra o braço da guitarra com raiva, e sai andando por entre o público, quando é seguro pelo braço. Volta-se, misto de raiva e amargura no olhar, vê a morena carnuda sorrindo e oferecendo:

- Vamos tomar um uísque, Billie?

E antes que ele responda, Laurinda leva-o para o canto oposto do balcão e chama o Amaro. Mimi se aproxima, cachorra apaixonada, e lambe o dono:

- Deixa que eu levo a guitarra.

Todos já foram embora. Apenas Alfredo e Marina, Billie e Laurinda. Alfredo aposta alto:

- Tem um lugarzinho ideal para nós, aqui perto: Motel Beira-Mar. Vamos? Marina sente a tentação roçando sua nuca, aquele sorriso, aquele malandro... Vê Billie com a morena.

- Não, Alfredo. Estou muito cansada, amanhã temos um show em São Paulo, preciso dormir. E despede-se com um beijo no rosto. Volta para a pensão pensando na mentira: show em São Paulo... Quem sabe, um dia?

Etevaldo finge prestar atenção na conversa da Laurinda, mas seu coração sai com Marina. Precisa inventar uma mentira. Olha para a morena e ouve o fim da frase: ... Motel Beira-Mar. Não tem certeza, mas pelo sim, pelo não, sai pela tangente:

- Não dá, morena, preciso dormir, amanhã temos show em Belo Horizonte. Um sorriso cansado mostra seu dente de ouro. Chama o garçon, mas Laurinda comanda:

- Eu convidei. A conta é minha.

Vai atravessando a rua e pensando: show em Belo Horizonte, quem sabe, um dia? Entra na pensão, abre a porta do seu quarto. Marina deve estar acordada. Tira a roupa, o uísque deita Marina no travesseiro ao lado. No outro quarto, Mimi estica o braço e sua mão roça a guitarra do Billie. Faz calor. Summertime. Marina veste o babydoll pra ninguém. Está cansada mesmo.

Um casal entra abraçado no Motel Beira-Mar. Correntes de ouro brilham no peito cabeludo do homem. A morena roliça se aninha no seu abraço.

- Um quarto com ar-condicionado. E bota uma fita do Frank Sinatra.