LISBOA, MEU AMOR
Raymundo Silveira
 
 

"Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura:
apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasômetros, dos cais,
ainda aqui as Primaveras escutam os versos que o vento faz sobre os seus telhados;
ainda se beijam as pombas;
ainda, no silêncio, o ar escorre pelas cantarias, como o sangue ideal da melancolia.
E Deus ainda não é um poeta impopular."
- Eça de Queiroz: Lisboa -

"Olhai senhores / Esta Lisboa de outras eras". Infelizmente não, poeta. A Lisboa de outras eras praticamente desapareceu num devastador terremoto em novembro de 1755. A Lisboa que iremos ver agora foi quase toda reconstruída a partir do século XVIII, graças ao gênio empreendedor do Marquês de Pombal. Mesmo assim vale a pena conhecer esta cidade fascinante, misto de Europa, África e Oceano. Sim, porque, não só Lisboa, como todo Portugal, não seriam o que são hoje sem as navegações. Portanto, um pouco contradizendo a canção, quase tudo o quanto existe para ver em Lisboa é relativamente recente, pelo menos no que diz respeito à cidade baixa. Mas não há como duvidar: "o branco véu da saudade cobre o teu rosto/ linda princesa". Passai ao largo daqui viajores, que esperam encontrar a Paris dos grandes Bulevares, a Londres dos sofisticados Palácios, a Estocolmo das ilhas majestosas, mesmo a Madrid - sua irmã mais rica - do colossal pólo turístico que de fato é. Lisboa é para os corações sentimentais ainda impregnados do romantismo e da nostalgia, que este início de século crê convenientemente mortos e sepultados.

Por mais que seus líderes políticos tenham um discurso modernoso onde as expressões "globalização","neoliberalismo", "economia de mercado" e outros similares sejam a tônica, o que de fato iremos encontrar é a proa da "Jangada de Pedra" de José Saramago, que insiste em zarpar para ocidente. "As festas, / As seculares procissões", decerto não existem mais, porém "os populares pregões matinais" voltam, sim. Pelo menos no canto dolente dos fadistas; nos semblantes melancólicos dos seus habitantes mais idosos; nos rouxinóis dos beirais da Mouraria; na indumentária negra das viúvas; nos reformados da baixa; nos elétricos da Praça de Espanha; nos comboios de Santa Apolônia e do Cais do Sodré; nos canteiros do Parque Eduardo VII de cujos fundos fita-a, majestoso, o vulto de bronze do Marquês de Pombal; nos quiosques da Avenida da Liberdade; nos guisados do João do Grão; nas touradas incruentas do Campo Pequeno; nas sardinhas assadas na brasa das vielas da Alfama; na antiguidade das pedras do Castelo de São Jorge e na "alegria gostosa de ser triste" de que fala Jorge de Lima em seu poema "Calabar".

Uma das raras áreas que a catástrofe do século XVIII achou por bem poupar foi uma fortificação de origem romana, aprimorada pelos mouros: o célebre Castelo de São Jorge com cerca de dois mil anos de idade, do qual é possível vislumbrar boa parte da cidade e do rio Tejo com sua ponte Salazar/25 de Abril. Faço questão de frisar o nome do tirano para que os seus atos não sejam esquecidos pelas novas gerações, pois as lembranças tristes também são necessárias, na medida em que ajudam a evitar que se repitam. Ali há lugares para passear, ver, rever, descansar e recordar. Mas o apogeu da visita a este Forte - pelo menos em minha ótica - é, paradoxalmente, uma descida. As ruelas do bairro da Alfama. Pode parecer esquisito, mas quando me perguntam, "Do que mais tu gostas em Lisboa?" Não hesito em responder, "das vielas da Mouraria e da Alfama". Por quê? Não sei. Juro que não sei! O que posso dizer é que quando chego lá me bate um misto de doçura e melancolia cuja síntese somente na língua portuguesa há um vocábulo para expressá-lo: Saudade! De quê? Também não sei. De algo já visto ou nunca visto. Um déjà vu mais estranho que os demais, simbolizado por aqueles varais nas janelas, por aquelas raparigas de olhares lânguidos, aqueles sorrisos serenos entrecortados de uma certa tristeza que - tenho certeza -, fizeram parte algum dia das minhas vivências infantis. É na Mouraria e, sobretudo na Alfama onde meu sangue português mais se revela. Ali, tenho uma convicção quase absoluta de que me encontro no meio de pessoas em cujas veias corre um pouco de sangue semelhante ao meu. Sangue, portanto, de gente minha. Gente do meu coração! Só após este périplo é que começo a minha verdadeira visita de turista a Lisboa, uma vez que o que antes fiz foi uma peregrinação ao meu antigo lar.

Daqui é que parto para o Mosteiro dos Jerônimos, para a Torre de Belém, para a Praça do Comércio, e daí para o Rossio, Restauradores, Praça Dom Pedro IV (aliás, PedroI; procurem se informar por quê) e Chiado. Este último é todo especial, pois é lá onde se situa o café "A Brasileira", onde me quedo horas a fio a cismar, não pelo fato de exibir o nome da minha pátria, mas por me trazer de volta o poeta da minha predileção. Em qualquer país, idioma, escola ou estilo literário. Era lá onde interrompia a rotina de viver para criar, na serenidade de sua solidão prolífica, os versos mais geniais que a poesia universal jamais conheceu iguais, o poeta Fernando Pessoa. Depois, é o que manda o instinto. Museu dos Coches, Fundação Calouste-Gulbenkian, Museu de Arte Antiga, Museu de Arte Popular, Museu da Marinha, Catedral, Parque Eduardo VII ou, simplesmente, flanar à toa pela Avenida da Liberdade. À noite - precisa de dizer? - Casa de Fados, voluptuosas guitarras, cantoras idem, vinhos gostosos, caldinho verde e bacalhau. Ah! As noitadas de amor em Lisboa, como são diferentes...