A GENTE PODIA SER FELIZ
Aline Carvalho
 
 

Quando te vi pela primeira vez, no restaurante do qual você era dono, fiquei estarrecida com a velocidade de seus dedos sobre o teclado do piano e imaginando aqueles dedos fazendo a mesma coisa em mim... Você era uma espécie de Alain Delon tupiniquim, amadurecido, blazer e camisa de gola rolê, olhos verdes e cabelos precocemente grisalhos, um misto de canastrão e mocinho de filme far-west.

Te convencer a casar comigo foi um ó. Acostumado na noite, liberdade principalmente enquanto tardia, casamento (para mim sinônimo de sexo, naquela ida década de 60) para você era quase uma hipótese fora de cogitação. Mas meu vestido lembrava os "tailleurs" da Jackie Kennedy, e a mesa de doces foi quilométrica. Virei motivo de inveja de todas as primas casadoiras, tendo como marido aquele pseudo-ator interiorano que, além de tudo, e embora nunca tivesse tido uma aula, tocava piano, no instrumento e nas almas.

Depois do casamento, veio o carnaval. Ou melhor, vieram os carnavais. Todos passados na minha solidão, enquanto você freqüentava o baile mais tradicional da cidade, reencontrado na noite. Mesmo no ano da minha gravidez fiquei sozinha, de penhoar acolchoado rosa e chinelos combinando, conversando com os mortos, companhia única na casa distante e vazia.

Quando a filha nasceu, você passou a exercer seu despotismo em grau exacerbado. Faltava mandar a menina "agora inspira, espera um pouco, expira..." Controlava até a água que a pobrezinha tomava. Foi aí que comecei a encontrar brinquedos no carro. O que seria bem normal, caso tivéssemos um filho e não uma filha, pois o que eu achava eram carrinhos, bolinhas... Uma vez encontrei uma pequena meia azul, de time de futebol. Time da cidade de onde chegara uma nova funcionária do banco, divorciada e com um filho pequeno.

Você, no seu personagem diurno, era caixa de banco estatal, numa época em que isso significava mais salário do que trabalho. Talvez por isso, parecesse um banqueiro. E me obrigasse a passar bife de filé mignon para seu café da manhã, antes da partida de tênis. E me obrigasse a passar suas camisas até que nenhum vestígio de ruga se encontrasse. Mesmo que fosse para amassá-la dez minutos depois, em outra companhia.

E eu tentava me fazer bonita, minha morenice brasileira constantemente me prendendo naquilo que parecia vulgar, embora eu tentasse. Corpo de senhora, alma de senhora. Sabia não participar de seus devaneios vespertinos durante o fim de semana, ao som de Djavan... você deságua em mim, e eu oceano.

Assim como deságuam em nossa corrente sangüínea milhares de células cancerosas todos os dias. Células que nosso sistema imunológico, caso funcione bem, combate com relativo sucesso. Mas anos de expectativas frustradas acabam com o bom funcionamento de qualquer coisa. E o corpo e o espírito já não podem, ou não querem, lutar contra esse ataque cotidiano. E aquela célula maligna cria família, rua, bairro, cidade... Dizem que tristeza não mata. Mata sim, eu sei por experiência própria.

E a gente podia ter sido tão feliz...