BRASIL - 1250º GRAUS
Marco Britto
 
 

"Lasciate ogna speranza voi che entrate!"
(Dante, Inferno,IX)
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Em meados do terceiro milênio, após a destruição da civilização, a Terra se tornou um lugar deserto com regras primitivas e mortais... Terror em São Paulo

"Eu já saí mais cedo do emprego por causa de mortes, por causa de jogo do Brasil na Copa do Mundo, e agora por causa da violência. Pelo que entendo, para fins empregatícios, considera-se todos motivos legítimos, mas se eu quiser sair cedo para brincar com a minha filha não posso. Depois as pessoas me perguntam o que está errado no mundo".
15.05.2006

A repercussão no mundo:

"New York Times" fala dos assassinatos e das rebeliões em São Paulo: "Um olhar preocupado, arma em punho, ao lado de crianças e civis. A imagem do Brasil (...)".

Na Europa, o espanhol "El País" traz na capa do site: "São Paulo: Sobe para 78 o número de mortos".

"Terror em São Paulo": diz na Alemanha o "Süd Deutcher Zeitung.

O italiano La Stampa afirma que os bandidos "se tornaram a verdadeira expressão mafiosa da criminalidade no Brasil".

Em Portugal: "São Paulo a ferro e fogo", jornal "O Público". E o "Diário de notícias" classifica: "Mega rebelião de criminosos".

A Anistia Internacional: Afirma que isso é uma ameaça à liberdade e a segurança de todos os brasileiros e exige que os assassinos sejam presos e julgados.

Jornal Nacional - Globo - Central de Jornalismo - É segunda-feira. Mas a semana custa a começar em São Paulo:

- "É voltar pra casa, hoje não tem jeito", diz uma paulistana.

- "É bem arriscado você pegar (ônibus), você não sabe qual vai ser o alvo deles", diz a recepcionista Teresa Cristina Santos.

- "Estou parando agora, estou me sentindo inseguro. Se eu for rodar com este carro, eles queimarem ou acontecer alguma coisa, vou viver de quê?", pergunta o motorista Denivaldo Amaro da Silva.

- "Desde às 4h eu estou aqui em pé, aguardando um ônibus. Ônibus, não - na verdade, estou aguardando a empresa, eles virem buscar", conta a auxiliar de escritório Ana Paula Jacinto.

- "Vim da Paraíba pra cá, no primeiro dia de trabalho acontece isso", lamenta Cícero (26 anos de vida e apenas três dias em São Paulo, tenta achar um jeito de chegar ao emprego recém conquistado).

- "As faltas são abonadas mas a gente perde as aulas", lamenta o estudante Ronie Barbosa.

Assustado com um tiroteio nas ruas do bairro, o vendedor Hélio Crepaldi pulou a grade para chegar mais depressa à escola da filha.

O Aeroporto de Congonhas, o mais movimentado do país, recebeu ameaças e isolou seu saguão principal. Os vôos não sofreram interrupção.

Pelo menos 22 shoppings fecharam as lojas até o final do dia, alegando falta de segurança.

- "Ai meu Deus, como é que eu vou fazer", pergunta a aposentada desesperada diante da agência bancária atingida por uma bomba.

- "Como sacar o dinheiro para comprar remédio?".

- "É um absurdo parar uma cidade como São Paulo!", afirma o aposentado Paulo Rocha.

Os números de ataques, mortos e feridos mudam a todo o momento.

Vamos aos números, que lembram uma guerra: 184 ataques em todo o estado; 56 ônibus queimados; 8 agências bancárias pelo menos destruídas; 43 policiais e cidadãos assassinados. E 38 suspeitos de envolvimento com esses crimes também morreram em confronto com a polícia. Ao todo, 81 mortos.
15.05.2006

O menino deve ter uns seis ou sete anos, mas sua voz se arrasta, pesadíssima, como se fosse de chumbo derretido: "não fico triste com nada". Enxergamos mal e mal, na iluminação precária do barraco, a bagunça e a imundície à sua volta. "Vivo "se" drogando", ele explica. "Minha vida é só alegria."

"O que você quer ser quando crescer?", pergunta o entrevistador a outro menino. "Quero ser bandido." Três de seus irmãos, ele conta, já foram assassinados. (Falcão, Os meninos do Tráfico)
Folha de S.Paulo - MARCELO COELHO - 21/03/2006 - 09h42

Entrevista de Marcos Willians Herbas Camanho, o Marcola, de 36 anos, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC). Em seu depoimento na CPI dos Tráfico de Armas:

- Você é do PCC?

- Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a "beleza dos morros ao amanhecer", essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão...

- Mas... a solução seria...

- Solução? Não há mais solução, cara... A própria idéia de "solução" já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma "tirania esclarecida", que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios...) E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução.

- Você não têm medo de morrer?

- Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora.... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala... Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em "seja marginal, seja herói"? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas "com autorização da Justiça"? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo.

- O que mudou nas periferias?

- Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no "microondas"... ha, ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência.

- Mas o que devemos fazer?

- Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, "Sobre a guerra". Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí...Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também "umazinha", daquelas bombas sujas mesmo.... Já pensou? Ipanema radioativa?

- Mas... não haveria solução?

- Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a "normalidade". Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco... na boa... na moral... Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: - "Lasciate ogni speranza voi che entrate!" (Deixai qualquer esperança, vós que entrais).

Estamos todos no inferno.