SE O GRÃO DE TRIGO NÃO MORRER...
Creso Abreu
 
 

Andei relendo trechos de "Os Irmãos Karamázovi" na Semana Santa. Tive a sorte de encontrar uma belíssima edição de 1953 num sebo em Porto Alegre, com tradução de Rachel de Queiroz (do francês, mas é Rachel). A edição da José Olympio ainda traz o obrigatório prefácio (aqui, bastante ampliado e ainda mais belo) de Otto Maria Carpeaux. Um presente maravilhoso, para mim mesmo. Bem, toda a gente já sabe como foi. Rússia do século XIX. Dostoievski imortaliza os irmãos Aliéksei, Ivan, Dimitri e o bastardo Smerdiakov na grande Literatura. Foi o último grande trabalho do genial escritor. A saga dos Karamázovi transpôs os limites do Império Russo, tornou-se patrimônio da humanidade, livro obrigatório. Para reler mesmo.

Aliéksei (ou Aliócha) é o falso personagem principal. Aos dezenove anos, escolhe a vida contemplativa, o ascetismo dos monges russos. Abandona os estudos elementares precocemente. Se Deus existia, somente Ele importava e a Ele unicamente o jovem Aliéksei dedicaria sua existência. Ivan é o intelectual ateu. O estudante brilhante que um dia imaginou reconhecer a inconsistência dos argumentos favoráveis a uma Existência Superior. A frase famosa de seus intensos conflitos é "se Deus não existe, então tudo é permitido". Mas Ivan é íntegro, almeja uma ética órfã de um Ser Supremo. O arrebatado Dimitri é o irmão hedonista, que vive cada minuto como se fora o último. Disputa a bela Grushenka com o velho pai Karamázov, odeia o velho corrupto profundamente. Dimitri é quase um amoral - ainda que um amoral com remorsos. O velho Fiódor Karamázov é a figura de homem inconseqüente, eternamente ébrio de irresponsabilidades. Pai biológico dos irmãos Karamázovi, está longe de ser pai espiritual. Nasceu para ser gauche na vida, cabem-lhe todos os lugares-comuns da mediocridade. (Alguns o colocam como um personagem inspirado na traumática relação do escritor com seu pai, do qual aliás falam alguns pequenos horrores. Dizem que era um médico frio de sentimentos, um egoísta.) O bastardo Smerdiakov, a um só tempo detestável e brilhante, é o verdadeiro personagem principal. O clássico ser espectral que acompanha a trama e vai tomando forma sem que nos apercebamos. Smerdiakov é provavelmente a figura mais rica do romance, muito embora seja bem menos citado que os demais. É o retrato do ser humano, em toda a sua glória e desgraça.

O texto nos transporta à imagem de personagens do mundo real. Aliéksei nos lembra um Geraldo Alckmin, santinho embevecido, que não perdeu as esperanças... Ou melhor, um Teotônio Vilela, messiânico e lutador. No futebol, lembra-nos talvez a figura de Zico, ético e dedicado. Na Literatura, o texto límpido de um Carlos Drummond, de um Érico Veríssimo. Ivan seria um Fernando Gabeira na política, com seu racionalismo ateu e íntegro. Para Ivan e Gabeira, os fins não justificam os meios, mas há neles um certo positivismo, que paira acima de tudo. No esporte, Ivan seria talvez Ademir da Guia, elegante e digno, a beleza voltada para a funcionalidade. Na Literatura, o estilo sóbrio de um Machado, ou de um Euclides da Cunha. Já Dimitri nos remete a Fernando Collor, aquele dos arrebatamentos megalomaníacos. Tudo é permitido, o que é importa é o resultado final. No esporte, lembra-nos Edmundo, Romário, Maradona, passionais e exaltados. Na Literatura, talvez os textos ousados e inquietos de Guimarães Rosa e de José Saramago. Smerdiákov, maquiavélico e diabólico, lembra, é claro, um José Dirceu. Ou ainda um Golbery do Couto e Silva - de quem dizem também ter sido um admirador da frase de Ivan sobre tudo ser permitido, se não existe Deus. Ou ainda o próprio Getúlio Vargas, com suas manhas. No futebol, o dissimulado Smerdiakov lembra-nos Zidane e sua traiçoeira cabeçada no adversário. Na Literatura, o estilo surpreendente de um Edgar Allan Poe, de Gilberto Freyre, talvez mesmo de um Cervantes. Smerdiakov também teria que ser discutido após umas boas férias ao lado das obras completas de Sigmund Freud. A figura corrupta do personagem Fiódor Karamazov teria muitos representantes dentre os homens públicos no Brasil. São muitos os que o velho Karamávov ilustraria. Este também teria similitude com alguns juízes mafiosos de futebol, com os dirigentes esportivos demagogos. (Bem, na Literatura, sei que há muitos enganadores, mas felizmente nunca li nenhum...) O genial Dostoévski é genuína auto-ajuda. Qualquer um de nós mesmos pode ser um dos Karamázovi, em momentos distintos ou não. Ás vezes somos vários ao mesmo tempo. Na viagem pela prosa dostoievskiana, a alma dos seres humanos é claudicante, com forte e inevitável tendência à corrupção. Na sua lógica não há cristão por decreto, como quer por vezes a religião institucionalizada. Hoje somos Aliéksei, amanhã seremos desprezíveis como o pai Karamázov, ou traiçoeiros como a serpente Smerdiákov. O preço da nossa virtude seria a eterna vigilância. Em epígrafe, temos nada menos que São João: "Se o grão de trigo não morrer, será infecundo; mas se morrer, produzirá muito fruto". Assassinar o corrupto pai Karamázov é a genial metáfora da necessidade de destruir o homem velho - e velhaco - que está dentro de cada um de nós.

Em plena Semana Santa, lá estava eu a refletir que se nem sempre podemos ter conosco quem queremos, um atormentado Dostoievski é certamente muito bem-vindo. Demasiadamente humano, traje completo de ser humano, um escritor maior do que o ser humano, o nosso atormentado Dostoievski.