TRAJE COMPLETO
Valéria Nogueira Eik
 
 

A cidade transpirava sob um calor de quase quarenta graus e ansiava por água fresca e descanso. Os veículos se arrastavam no trânsito congestionado. Se o velho Deus, cansado e míope, olhasse lá das alturas, veria uma grande cobra coral movendo-se lentamente pelos trilhos invisíveis do entardecer. Gente indo a lugar nenhum; gente voltando de lugar algum.

- Que merda de trânsito! Que merda!

Era Marina, resmungando dentro do carro. Olhava as horas no relógio de pulso. Um belo e inútil relógio. Marcava as horas, mas, não movia o carro e nem aliviava a tensão. Suas inúmeras atividades a estavam consumindo. Resolvera doar uma empresa importante para o irmão, que se encontrava numa difícil situação financeira. Seus ganhos diminuiriam, mas, ainda assim, ficaria numa posição extremamente confortável e teria tempo para cuidar de si mesma. Sentia que a sua saúde andava abalada. Estava realmente exausta! Carlos não aprovara a doação. "Seu irmão é um irresponsável! Em pouco tempo vai levar a empresa à falência!" - dizia ele. Carlos! Era um bom marido. Ganancioso, mas, um bom marido! O celular tocou.

- Marina! Onde você está? Querida, estamos atrasados!

- Oi, Carlos! Estou presa neste trânsito miserável!

- Deixei o seu traje completo em cima da cama.

- Que traje?

- Eu escolhi aquele vestido vermelho, com renda francesa, amor.

- Querido! Fez a escolha certa!

- Eu sei, amor. É a sua cor predileta, e você fica maravilhosa!

- Obrigada, Carlos. Logo que me livrar deste trânsito maldito eu chego em casa.

Desligou o celular. Estava muito cansada e ainda precisava atender aos compromissos sociais da noite. Esmurrou a direção. Sentiu que a ansiedade estava a um passo da loucura. Traje completo! A palavras atingiram o seu consciente como um raio fulminante. Traje completo. Não coloque o traje completo. Traje completo...traje completo... Mas, o que significava aquilo?

- Que bobagem! Perder tempo com frases idiotas! Minha vida já é um grande pesadelo! Não preciso criar mais um. Quero chegar logo em casa. Trânsito do inferno! Cidade do inferno!

O sinaleiro arregalou seus grandes olhos verdes, e, finalmente, a imensa cobra coral se moveu, arrastando consigo todos os carros, todas as angústias e todos os medos. O prédio imponente estava silencioso, como convém a um condomínio de luxo. A garagem abriu-se numa grande fenda, engolindo o carro e o mau humor de Marina. O elevador panorâmico e elegante aspirou os restos do dia, transportando a mulher num vôo silencioso e rápido. Finalmente, ela estava em casa.

- Até que enfim, Marina! Você sabe que este jantar é muito importante pra mim.

- Sim, eu sei. E como sei! Faz dias que você não fala em outra coisa.

- Não vamos brigar, amor! Tome seu banho e coloque o vestido vermelho. Você fica linda dentro dele.

Marina entrou no banheiro e trancou a porta. Abriu as torneiras do chuveiro, tirou a roupa lentamente e sentiu o frescor da água sobre o seu corpo cansado. Esqueceu-se do dia, esqueceu-se do trânsito, esqueceu-se do jantar. E quando escutou as pancadas fortes na porta, assustou-se.

- Marina! Pelo amor de Deus! Estamos atrasados! Vista-se, querida!

Ela avistou o vestido vermelho sobre a cama. Traje completo...traje completo... Em minutos, estava pronta. E quando apareceu na sala, vestida com o traje preto, Carlos demonstrou irritação.

- Marina! Eu escolhi o vestido vermelho. Quero que todos notem a sua beleza, querida! Troque a roupa, por favor.

- Desculpe, Carlos, mas, vou com o vestido preto. É mais discreto e adequado para a ocasião.

Do alto da sua terceira dose de uísque, ele parecia um bêbado teimoso, insistindo naquela idéia quase infantil.

- Querida! Prefiro o vermelho!

- Eu prefiro o preto, Carlos. E vamos logo!

O percurso foi feito em silêncio. Marina conhecia muito bem o humor instável do marido. E quando este humor era regado a uísque, o melhor a fazer era manter um mutismo absoluto, para não gerar faíscas naquele terreno altamente inflamável. O jantar elegante transcorria sereno. Marina estava alegre e um bem estar inexplicável pairava sobre ela. Nem as conversas fúteis a estavam aborrecendo.

- Marina! Como você está linda!

- Obrigada, Rebeca. Você também está. Este seu vestido é deslumbrante. Adoro vermelho!

- Eu comprei um vestido preto para este jantar. Mas, na última hora, resolvi colocar o vermelho.

- Que coisa! Eu vinha com um vestido vermelho, e me decidi pelo preto depois do banho.

As duas amigas riram. Mas, as risadas foram cortadas por um zumbido esquisito. Rebeca caiu, atingida por um tiro. O sangue vermelho misturou-se ao vermelho do vestido. Abraçada à amiga morta, Marina encontrou, em meio àquela multidão de olhos assustados, o implacável olhar de Carlos.

 
 

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