COMPRA-SE UM PAI
Claudia Sanzone
 
 

Toda sexta-feira sigo o ritual sagrado de minha vidinha de divorciada. Saio do trabalho às seis, passo em casa, pego o Vinícius e dirijo uns seis quilômetros para levá-lo à casa do pai. O genitor do garoto se chama Rogério, meu ex-marido. Afeito a pontualidades, Rogério quase sempre se posta como um dois-de-paus na varanda da casa à espera do garoto. Estaciono o carro. Recebo de meu filho um beijo apressado; do ex-cônjuge, o cumprimento usual, calculado. Retribuo num tom parecido, rindo por dentro de minha macaquice.

Chego em casa e dou prosseguimento àquela rotina das sextas. Ponho a caneca com água pela metade no microondas. Um minuto e meio. O apito do aparelho soa três vezes. A água ferve e mergulho nela o saquinho de chá. Pingo algumas gotas de adoçante e adiciono uma colherada de açúcar. Excentricidade, confesso. Quem não as tem? Acendo o abajur da sala, ligo o som e a penumbra se impregna de Chopin. A fumaça da bebida quente umedece meu rosto e, por condicionamento imposto pelo ritual, começo a pensar na vida. Hora de relembrar, de bater na tecla das mesmas recordações. A imagem do Rogério de pé, aguardando a entrega do filho, geralmente me vem à mente nesse momento. Tudo o que ele faz é bem calculado. Sempre foi metódico, detalhista, chato. Há dez anos representava o homem ideal, encaixava-se certinho nas minhas necessidades, na minha visão daquela época. Hoje é um saco, é passado, deixou de ter a ver. A gente muda e se cansa das pessoas. Às vezes sinto inveja de quem cultiva uma amizade por anos. Não sou assim. Meus amigos e meus namorados são provisórios, acompanham a moda de meus instantes.

Largo as lembranças. Dedico-me a outros afazeres domésticos até que passo a mão no livro do momento. Leio umas duas páginas e o sono me derruba.

Mais uma vez o despertador me tira do sono adorável da manhã. Nova seqüência da velha rotina. Banho, escovação dos dentes, café da manhã. Toca o telefone. Do outro lado, Rogério.

- Alô.

- Vinícius teve um péssimo comportamento aqui em casa agora de manhã.

- O que houve?

- Ele começou a dar voltas ao redor da mesa da cozinha e se recusou a sentar conosco.

- Por que isso?

- Disse que jamais se sentaria à mesa na companhia de um negro. Ele se referia ao filho da nova empregada, que tem pele escura. Fiquei completamente aturdido e envergonhado com a atitude dele. Que bela educação a senhora tem dado ao garoto, hein?

- Ah, Rogério, tenha paciência! Lamento que o Vinícius tenha agido assim. Você sabe que nunca tive preconceito racial. Namorei dois negros, inclusive.

- Quem mais haveria de influenciar o menino tão negativamente?

- E eu sei lá!

- Vou levá-lo de volta agora. A presença dele aqui só faz piorar meu constrangimento.

Covarde! Deveria ter chamado o filho num canto para orientá-lo, fazer o papel de pai. Mas não. Preferiu descarregar a culpa em cima de mim e trazer o autor do problema de volta. E eu que me vire, que aconselhe o garoto.

Dentro de poucos minutos chegam os dois de cara amarrada. Vinícius entra como um soldado, pisando firme, de braços cruzados e sem olhar para o lado. Acompanhei-o com os olhos na tentativa de tomar coragem para receber o sermão do pai, que não tardaria. Respirei fundo e voltei o rosto em direção à porta. Lá estava a estaca circunspecta, com a mão esquerda dentro do bolso da calça. A direita alisava a ponta do nariz. Sobrancelha esquerda levantada. Ar de superioridade, um suspiro demorado e o início da ladainha. Rogério era mestre em retirar problemas do fundo do baú. Despejou uma velharia incontável de falhas existentes e imaginárias da educação de nosso filho. Todas minhas, claro. Enquanto tagarelava com sua peculiar eloqüência postiça, eu buscava outras reminiscências. Aqueles gestos afetados me transportaram para uma discussão que tivemos pouco antes da separação. No tal dia fatídico, num de seus movimentos espetaculosos e tresloucados, Rogério decidiu dar um murro no inocente pote de margarina semiderretida que fora deixado em cima da mesa. Um tasco da substância gordurosa e pegajenta grudou-lhe na testa. Ele não se deu conta do ocorrido e manteve inalterado o ritmo da discussão. Tampouco fez idéia de meu extremo esforço para conter a gargalhada. Seguramente não imaginava, agora, a fuga providencial que a cena me proporcionava.

Regressei dos pensamentos que me mantinham absorta. Rogério parecia dizer que Vinícius não daria para nada. Proferia em alto e bom tom que o guri era um zero à esquerda, um idiota. Saiu sem que eu dissesse palavra.

Atrás da porta de seu quarto, Vinícius estivera atento a tudo. O constrangimento agora era meu. Não conseguia encarar meu filho diante de minha covardia. Fui omissa por não defendê-lo, por não rebater os impropérios do pai. Antes tivesse mandado as recordações às favas e despejasse na cara do Rogério as qualidades do menino. Excelente aluno, criativo, obediente e responsável.

Nos dias que se seguiram, nada aplacava a melancolia cortante de Vinícius. Notei que sozinha era incapaz de ajudá-lo. Recorri ao auxílio de uma profissional. A psicóloga confirmou o que eu esperava. As queixas de dores no peito e a falta de apetite eram conseqüências das palavras cruas e rudes do pai. Segundo ela, meu filho apresentava sintomas psicossomáticos oriundos de um sentimento reprimido. Só poderia superá-los quando encontrasse um meio de extravasar sua frustração. Recomendou que eu aguardasse, que a recuperação do menino não tardaria. Mas pareciam intermináveis aquelas semanas em que meu filho era todo angústia e apatia.

Certo dia Vinícius me apareceu com um pedaço de folha arrancada do caderno e um olhar mais aliviado. As linhas da pauta daquele bilhete, tingidas de um azul claro, tênue, contrastavam com a grafia escura e de um tremido firme, de quem vislumbra um oásis:

- Mãe, escrevi um anúncio e quero que você coloque no jornal.

Imóvel, deparei-me com essas palavras: "Compra-se um pai. Pode ser de qualquer tipo, não me importo. Aceito um pai pobre, feio e burro. Serve até preto."