DOIS BILHETES
Claudio Alecrim Costa

Levantei cambembe, com tufos de cabelos que apontavam para todos os lados, e deslizei feito um patinador pelo corredor até o banheiro, onde parei ante o espelho de Dali com relógios dissolvidos marcando hora nenhuma.

Deixei a água turva encher as mãos e mergulhei o rosto repetidas vezes para sair do estado catatônico em que me encontrava. Minha expressão, liquefeita, desmanchava-se em longos fios de cristal que escorriam para o ralo, alegria e dor se esvaindo de mim como máscara amorfa.

Em cima da mesa um bilhete, cuidadosamente colocado no teclado do computador, parecia fazer parte do apartamento. Fiquei por algum tempo olhando para o objeto familiar...

Ela estava linda no vestido largo. Sentada sobre as pernas, contava histórias irreais e ria de mim como uma criança. Eu vivia enfeitiçado, com luas sobre minha cabeça e o corpo crispado por suave sopro outoniço.

Abri a carta buscando a nitidez necessária aos olhos ensangüentados. Era lacônica como um recado rotineiro que deixamos para comprar jornal e café. Letras feitas de pedra fria que, aos poucos, me traziam de sonho infesto...

Querido Afonso,

Descobri minha alma vazia. Vazia de mim e você. Não quero prolongar isso. Guarde o Vinho.

Cuide-se,
Laura

Larguei o corpo na poltrona e chorei sobre o papel perfumado.

- Afonso...

Olhei assustado e vi uma mulher excessivamente pintada, ajeitando a roupa com praticidade.

- Quem é você?

- Laura...Você ligou para a agência e pediu uma garota que se chamasse Laura, lembra?

- Não...

- Foi sorte minha...Sou o patinho feio...Sempre me disseram que Laura era um bonito nome...

- Desculpe...Acho que bebi demais...

- Você bebeu sozinho...Tive que arrastá-lo até a cama. Nem aproveitou o programa...Chamava-me de Laura como se já me conhecesse e brindou várias vezes ao nosso casamento...

- Meu deus...

- Desculpe...Eu entendo a sua dor. Nesse trabalho atendemos homens com problemas emocionais também...

- Eu combinei algum preço...?

- Duzentos reais...

Estiquei o cheque e Laura enfiou na bolsa com guizos. Aproximou-se e beijou meu rosto com carinho.

- Tchau, Afonso...

- Espere...Você tem algum cliente nas próximas horas?

- Não.

- Eu pago o dobro para ficar...Apenas fique...

Ela deixou a bolsa cair sobre a cadeira e ajoelhou-se deitando o rosto em minhas pernas. Pude sentir os cabelos macios de Laura enroscarem em meus dedos e beijei com carinho seus olhos cerrados. Gastaria todo meu dinheiro, hipotecaria meu apartamento para que Laura não me abandonasse novamente.

- Se todos os clientes fossem assim...

- Assim como?

- Você me trata com carinho...

- Deveria ser diferente?

- É que nem conversamos nos encontros...Alguns falam coisas horríveis...Você me chama pelo meu nome...

- Eu gostaria de ficar com você pra sempre...

- Seria preciso muito dinheiro! - Riu.

- Certas coisas não têm preço...

- Como?

- Nada...

Abracei o corpo delgado de Laura e fiquei assim por um longo tempo. Ela pegou a minha mão e colocou sobre os seios rígidos e pequenos. Beijei sua boca demoradamente. Seus olhos pareciam luas sob uma fina nuvem, com pequenas estrelas feitas de lágrimas.

Acordei sentindo o corpo pesado e dores na cabeça pela ressaca que ainda durava. Laura não estava mais. Outro bilhete ocupava o lugar do primeiro:

Querido Afonso,

Nunca encontrei um homem bom e carinhoso como você. Pensei, por um momento, em largar tudo. É difícil voltar à vida real. Jamais te esquecerei.

Beijos,
Laura.

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