DO PESO DAS PENAS
Lia Abreu Falcão
 
 

A inércia o atingira como um raio há mais de vinte anos. Ele disfarçava bem o marasmo de sua vidinha inútil e, aos poucos, convencera-se de que valia a pena sobreviver ao caos cotidiano.

Machucaria menos pessoas se apenas existisse. E assim foi até aquele dia. Voltara da mercearia com o asco dos dias a lhe pesar sobre os ombros. A rotina insuportável para dali a duas horas o aguardava como um cão. Ele não seria capaz de conduzir-se mais sessenta minutos naquele lugar, com aquelas pessoas, com aqueles assuntos, naquela vida que sabia que não merecia.

Aguentara filhos, crises, falta de perspectivas, depressões. Não poderia exigir mais nada de si mesmo. Tinha de se dar alforria. Sentia-se um calhorda pois tudo que construíra não lhe bastava mais. Considerou um bilhete de explicação. Para quem?

Diria o improvável, que arranjara uma amante porto-riquenha e outra do outro lado do Equador. Era tudo falácia. Falta de romance. Vida que não fora vivida. Ninguém compraria a idéia. Fato é que a vidinha dele era medíocre e insuportável. Nem ele mesmo toleraria mais um dia. Iria sumir sem vestígios.

Era o máximo da canalhice não se despedir dos amigos. Mas até pra ser canalha era preciso forças. E isso, ele não tinha. Gostaria de dar um grito, mandar tudo às favas: contas, hipotecas, prestações, obrigações, tudo pro inferno. Não, pra lá não. Ele já morava lá e as contas seriam de todo inconvenientes.

Não. Mandaria mesmo era pra lugar nenhum. Nesse onde estava habitando fazia tanto tempo. Olhou ao redor e viu que seu ato homérico e iminente, era uma tentativa patética de se dizer vivo ainda. Retirou o último cigarro da carteira ressentido das quimeras do antes e do amor que hibernava nele, distante.

Entre uma baforada e outra, quedou-se quieto à mesa. Cansado de pensar, deu um último trago e desembrulhou o pedaço amarrotado de papel encardido pelo tempo. Palavras pesadíssimas que sobrecarregaram uma vida inteira que poderia ter sido tão outra. Quanto pesam certas palavras escritas com penas tão leves? Quantas penas poderiam ser evitadas sem o peso de duas únicas palavras? Na prescrição médica: "Tomografia. Aneurisma." Vinte e muitos anos. Uma eternidade em uma linha tênue, manuscrita.

Resistira ao diagnóstico, ao tratamento. Levara anos afastando-se da obrigação diária de ser feliz a despeito do caos. Agora, o fardo de viver já não lhe era tão imenso. E isso era muito bom. Flagrou-se aliviado e, pela primeira vez, realmente feliz.

Entendeu que, enfim, vivera bem, ao seu modo. E essa constatação lhe trouxe de volta o esboço de um sorriso. O sorriso de um ex-condenado. Sorriso de quem já não se incomoda. Sorriso de quem aprendera a flutuar com o peso das suas penas ao sabor dos ventos.

 
 
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