ALLEGRO MISANTROPO XXII
Sérgio Galli
Inverno de 2006

(Ao som de “The land of the sun”, Charlie Haden e Gonzalo Rubalcaba; Interstelar Space, John Coltrane)

“... Um canalha polido não é menos ignóbil que outro, talvez seja até mais...”
- André Comte-Sponville Pequeno Tratado das Grandes Virtudes -

Comecemos nossa viagem intergaláctica pela via-láctea. Big-bang. Pré-cambriano, depois, vem a explosão do cambriano. Mezozóico. Paleozóico. Paleolítico. Neolítico. Na trilogia do historiador inglês, Eric Hobsbawn, a era do capital, a era das revoluções e a era dos impérios. A era do gelo. e, finalmente, chegamos à era do cinismo. Ou à era do degelo moral. A era do vale tudo cujo único valor, única virtude é o vil mental. Era da vilania, do triunfo da canalhice. Estamos todos indiferentes seja à carnificina em Ruanda, à destruição do Líbano, ao aquecimento global e suas conseqüências, à destruição do planeta. Já perpetramos a extinção de diversas espécies. Agora, extinguimos as virtudes, a ética, a moral. A corrosão do caráter está em pleno andamento.

Quando o presidente da República legitima o “caixa dois”, considera corrupção, roubo, prevaricação e outros tantos crimes como apenas “erros” dos companheiros e do partido, é realmente o cinismo, a cara de pau instalada. O despudor, a arrogância com que vomita esses despautério. Um atorzinho global, solidário ao presidente, diz que política se faz com as mãos sujas. Outro, que se a causa é justo, qualquer meio é válido. È Maquiavel mal lido e mal citado. Fazer política virou sinônimo de fazer negócio. Tolice minha. Afinal, estamos no capitalismo, ou seja, tudo, tudo, literalmente tudo é mercadoria. Tudo está à venda. Tudo tem um preço. È o poder pelo poder, versão empobrecida da arte pela arte (esta, por sinal, acabou: não há mais literatura, música, pintura, escultura, cinema, teatro, poesia).

Por falar em capitalismo, o discurso econômico entronizou em toda parte, tanto que conseguiu até despolitizar a Política. Só se fala, escreve, diz, superávit primário, PIB, ajuste fiscal, spread, juros, inflação, taxa selic, preço, reduzir custos (sim, nós, as pessoas, somos custos), produtividade, competitividade, capital social [sic], capital humano [sic], desenvolvimento, crescimento, mercado.... ad infinitum... Não agüento mais. È insuportável. O resultado mais drástico desse discurso é o nosso embrutecimento. Não ficamos mais perplexos, perdemos a capacidade de indignação. Estamos, enfim, resignados a sermos apenas pacatos, pusilânimes espectadores, consumidores.

È a era do canalha grosseiro. Pior, a era do canalha polido. A era do marketing. Da markética.

A propaganda está aí para justificar os fins, com muito gaclê, muitos efeitos especiais. A era das relações públicas. Dos eufemismos. Vejam, não há mais capitalistas e sim, “investidores”, “empreendedores”, “empresários”. Nem mesmo operário, agora é “cliente”, “trabalhador”, “peão”. Também não há mais pequeno burguês, agora é tudo classe média, ou na linguagem de publicitários: classe A, B, C, D, E, F, G, H, I , J............................... X, Y, Z. “Caixa 2” virou “recursos não contabilizados”. Os Estados Unidos invadem o Iraque e dizem que foi guerra. Israel e os Estados Unidos bombardeiam o Líbano, o Iraque, o Afeganistão, morrem civis, chamam isso de “efeitos colaterais inevitáveis”. E assim por diante. Goebbels é o paradigma dos publicitários e relações públicas. Eles transformaram as em autômatos, videotas, mais preocupados com o culto às celebridades, as fofocas sobre os “artistas”, as intrigas da novela das oito e, claro, consumir, consumir, consumir, do que com as questões relevantes. As eleições, o voto, tornaram-se apenas mais um ritual desse espetáculo midiático.

Enfim, no país de Alice e suas maravilhas, chegamos ao fim da jornada.

Bon Voyage.

Sugestão de leitura: “Uma breve história do homem”, de Michael Cook, Jorge Zahar editor. “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, de André Comte-Sponville, Martins Fontes. “Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias”, Philip Gouverith, Cia. das Letras.

 
 
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