DEIXANDO TUDO PARA TRÁS
Valéria Nogueira Eik
 
 

O dia era o próprio sol, esbanjando um calor aconchegante e cheio de promessas encantadoras, de um nada para fazer, de preguiça, passeios sem rumo e de uma vagabundagem inocente que faz nascer no ser humano uma consciência plena dos direitos adquiridos pelos deveres realizados.

Estava tudo preparado de muitas vésperas e o cargo de comando havia sido transferido temporariamente.

Enfim, a viagem tão sonhada ia caminhando de acordo com os planos, que consistiam em uma total falta de planos.

Ócio planejado, preguiça consentida, comer e dormir, dormir e comer, talvez matar a fome de felicidade, quem sabe beber novos sonhos, alimentar a vadiagem, e experimentar a liberdade com sabor de liberdade.

Apenas ir, sem saber quando voltar.

Deixar tudo para trás, sem olhares, pensamentos ou remorsos.

O desejo de partir estava ocupando alma e cérebro, numa totalidade quase irresponsável e insensível, fazendo hibernar toda a vida intensa do agora, que já ia se tornando passado.

E lá se foi a criatura, munida de pouca bagagem, rumo ao enigmático futuro, em busca de nada, à procura de tudo, tentando encontrar alguma coisa que tivesse semelhança com o que todos chamam de paz.

A paisagem deslizava numa velocidade deliciosa, dizendo a todo instante que ver nem sempre é o melhor, pois o sentir é mais real.

O asfalto macio provocava delírios e ela estava sentada num tapete mágico, voando e sobrevoando esperanças, ao mesmo tempo em que abria gavetas de ilusões.

As gavetas, ah, as gavetas! Iam sendo esvaziadas freneticamente, e pequenos ou grandes projetos eram jogados janela afora, com uma alegria vingativa e inebriante.

Gavetas vazias e um único sonho nas mãos.

De ora em diante, além da inocente vadiagem, somente existirá o hoje espelhado nos rios, que apenas seguem com a certeza de que tudo está onde deveria estar, e de que tudo será como deverá ser.
Nada mais que isso.

 
 

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