ANONIMATO
Maurem Kayna
 
 

Fredo, que nunca gostou do próprio nome, era homem acanhado e pálido. A reduzida eloqüência e a apatia gris argumentavam a favor de seu raso sucesso como corretor de imóveis. Assim que completou os cinqüenta anos, no final de agosto, a esposa abandonou-o para ingressar em novas rotinas, que incluíram o curso noturno de psicologia, o crescimento do negócio caseiro de artesanato e um princípio de vaidade. O pretexto dela para o divórcio foi simples, irretorquível: "Não irás nunca a lugar algum, e eu ainda tenho pressa nas veias. Não me somas nada e para ti não farei falta maior que a conservação das camisas". Não houve rusgas ou emoções bruscas, coisas que não combinariam mesmo com Alfredo, sempre temendo os olhares enviesados da vizinhança. Não havia filhos, portanto nenhum motivo os forçava à convivência.

O ano que seguiu-se à separação instalou-se nos ossos com todo o envelhecimento que até então não o havia atingido. Desnecessariamente, pois contava com recursos razoáveis advindos das vendas esporádicas que intermediava, buscou abrigo numa pensão em região de má fama, perto da rodoviária. Quarto úmido, dois banheiros mal conservados no final do corredor, pagamento quinzenal, religiosamente atendido em dinheiro miúdo, pois receava demonstrar a alguém suas possibilidades financeiras. Ali José Fredo coexistia com prostitutas rumo à aposentadoria, desocupados de diversas estirpes e pretensos honestos em fim de carreira. Pensava que desse modo evitaria pedidos de pensão de sua ex-mulher e seguia a rotina de emoções planas, sem sustos nem horizontes, e sem suspeitas do abrupto que o aguardava.

Foi o funcionário público exonerado, vindo de Caxias do Sul, que descreveu o cotidiano do falecido para o repórter que apareceu assim que a polícia terminou os levantamentos necessários. Não havia muito para compor a trama esperada pelo ruivo de caneta ansiosa. O senhor do penúltimo quarto falava pouco, mas era educado com todos os moradores - fixos e flutuantes - sem dar maiores indícios dos acontecimentos por trás da porta verde musgo. Todas as quintas-feiras, saía com os lençóis acomodados na sacola da lavanderia próxima dali junto com a mulher de idade indefinida que o visitava nas quartas à noite e ficava até a manhã seguinte. Como nesta semana ela não apareceu, o caxiense do andar térreo opinou suicídio por desgosto afetivo. Já sua vizinha bisbilhoteira falava de um assassino em série, que vinha para assolar a decadência do bairro. Cada qual fantasiava conforme seus próprios fantasmas.

Faltara-lhes, no entanto, testemunhar a chegada da loira madura e discretamente maquiada algumas horas antes do habitual. Seus passos não eram voluntariamente furtivos mas passaram anônimos pelo corredor cheirando a desinfetante barato. Nenhum morador ou ocupante ocasional a viu entrando no quarto do cinqüentenário; também não houve quem cruzasse com seus olhos de choro ao sair, quando tomou certo cuidado para não ser vista. Fosse por culpa ou pudor, preferia não mostrar o inchaço sob o olho direito. Partiu calada, sentindo dignidade na decisão de não voltar.

Um pouco mais tarde, na mesma noite em que José Alfredo pensava que dormiria acompanhado, dona Sueli, que administra a pensão sem maiores atenções que a da cobrança quinzenal aos moradores permanentes, não quis saber a que quarto subiria o homem de bigode mal aparado. Pensou que encontraria Marisa, travesti popular daquelas ruas que ocupava o quarto no final do corredor do terceiro andar. Acreditava já ter visto os dois juntos.

Mas foi o Vasconcelos que abriu-lhe, no andar logo abaixo, a porta de pintura gasta. Arregalou olhos surpresos sem articular palavra. Não que se julgasse esperto o bastante para enganar o dono do loteamento enredado em disputas de família, mas não pensava que o lesado viria cobrar-lhe a decência que ele mesmo não portava com os irmãos. Enganou-se, como já havia errado muitas outras vezes nos julgamentos do comportamento alheio.

A cobrança pelos deslizes acumulados na vida de corretor com pouco escrúpulo, marido indiferente, amante eventualmente violento e pessoa frustrada com a própria falta de audácia veio no fim de uma noite falida. Mas não veio envolvida no costumeiro marasmo, senão trançada numa angústia que até ali desconhecia.

Subestimara as reações de Valdir, pouco dado a escândalos, mas desprovido de dificuldades morais com o uso do 38 herdado de seu tio. O sujeito de cabelos gordurosos não foi exigir ressarcimento, chegou lá para punir e eliminar a negociação que transferia para José Alfredo Vasconcelos um dos vários terrenos razoavelmente localizados que entregara para venda. José, mais cinzento que de costume pensou em fugir, tateando passos incertos para fora do discurso rancoroso do proprietário iludido, que tomava a medida exata e total do quarto de dormir e pouco viver. Mas o vingativo, embora parecesse lerdo, era atento. Permitiu que o andar imerso em medo viscoso levasse o fracassado ao cubículo da direita, no final do corredor. Seguiu-o com os ouvidos calmos e deixou que se iludisse com esperanças esparsas, induzindo-o, a pensar que sua raiva era coisa de dizer desaforos entre dentes e ir embora sem outras resoluções.

Divertia-se, sabendo que havia pavor e covardia preenchendo os minutos pegajosos do estelionatário escondido no banheiro, e quando cansou-se da brincadeira macabra, franziu o cenho, descalçou os sapatos barulhentos, preparou a arma, esperou o barulho na escada dissolver-se com o trânsito da quase madrugada e aproveitou a gritaria no posto de gasolina para ir ao encontro de José Alfredo, que, encolhido ao lado da privada, contabilizava suas chances de mudar de cidade. Um tiro apenas.

Passos exatos até o quarto do possível cadáver. Ouvidos alertas. Pés novamente calçados, silêncio definitivo para Alfredo Vasconcelos. Valdir não carregava temores: suas cores, por turvas que fossem não eram esmaecidas como o retraimento dissimulado de sua vítima. O rebolado faceiro do travesti descendo a escada e cantando alto, vinha oferecer o álibi que, sem que soubesse, já haviam previamente lhe atribuído. Esperou Marisa na escada, como estivesse subindo em sua busca, beliscou-lhe o traseiro e saiu em meio a uma festividade frívola, testemunhada na portaria da pensão. Despediram-se sem promessa de memória recíproca após o pagamento por rápidos serviços prestados junto ao muro, três casas depois do edifício gasto onde jazia Fredo. O assassino não se dispusera a subir ao quarto já muito usado naquela noite.

Havia, no lugar do corpo, o que o repórter chamou de marca do pânico experimentado pelo morto: o amarelado da urina exalando, junto do sangue coagulado, a própria natureza de Alfredo. A fotografia do local do crime estampou as páginas policiais dos jornais sensacionalistas junto às especulações que chegaram a creditar o feito à amante agredida. O inquérito não alcançaria culpado algum e entes queridos não havia para cobrar um outro epílogo.