FILHO DA LUZ
Eduardo Prearo
 
 
Nos seus estudos de astrologia, José Lia chegava à conclusões geralmente sem sentido, como por exemplo, a de que o signo onde estava o nódulo norte indicava o ponto fraco da pessoa. Naquela época, falar em astrologia ainda era visto como doença. José Lia não tinha profissão definida e sabia que não pertencia ao mundo dos machos, cheios de cumplicidade e pouco ignominiosos, mormente diante das frutinhas. Os crepúsculos das sextas-feiras eram marcados por perseguições de pessoas desconhecidas, que pareciam querê-lo na forma de um Alan Delon. Mas José Lia estava longe de ser um Alan Delon, anos-luz dos considerados comunicativos e carismáticos. Como todo pré-obeso, tinha mania de regime, engordava nos períodos em que sua frágil estabilidade estava em alta. Desembuchava suas frustrações com samaritanos ou então nas irmandades, mas nada surtia um efeito benéfico, chateava-o ainda mais. Ele escrevia cartas a Z., uma pessoa por quem cristalizara havia pouco tempo, guardando-as depois em uma gaveta trancada a sete chaves. Em uma das cartas, escreveu o seguinte:

Errar não me parece humano, mas simplesmente um ato monstruoso. Falo sempre muito pouco na opinião alheia, mas para mim é demais o que falo. Sinto-me anos-luz da maioria das pessoas. É nesses momentos que é quase impossível verbalizar sem achar que minha voz soe para fora. Acho que existo somente para o mal, jamais serei um filho da Luz. Hoje, agora exatamente, no verão desta noite, estou só como todos os seres sós, sinto-me como todo mundo. A gordura e a calvíce me impedem de procurar você; você não merece, merece coisa melhor. Ah, que vontade que deu de abrir um vinho para embriagar-me, mas acabo de tomar dois valium. Descontei em você sutilmente alguma coisa? Doei-me sem desconto, de graça, e por amor, talvez por amor. Falei de você a Marta, e ela insiste que eu volte à boate onde nos conhecemos. Voltaria lá, sim, mas bêbado, após ter tomado uma garrafa inteira de um vinho vagabundo como eu ou então vulgar como eu. Mas não, desisto; o ponteiro da balança se estagnou, o populacho me vê com desconfiança, principalmente as mulheres (elas têm o sexto sentido). Então sou mesmo indigno de confiança. Seja feliz, é duro dizer isso, mas seja feliz. A felicidade é finita no meu caso. No seu espero que seja infinita. Escrevi até um soneto esta manhã enquanto o Sol demorava a despontar, que certamente não tem nenhum valor literário (quem sou eu, para ter algum):

Se me desprezam é por que mereço,
sou cachoeira, sou tranqüilo assim,
mesmo surtado, de colar um terço,
no início um beijo, depois abraços, fim.

Eternamente solitário, burro,
sai desta boca uma fumaça branca,
meu canto mouco parecendo um urro,
quem olharia pras estranhas ancas?

Não passeei pelo jardim do éden
e nem comi da macieira fruto,
as minhas meias e os ratinhos fedem.

Quem me merece nem sequer nasceu
nem nascerá antes de eu ter morrido?
Tome que o filho que este filho é teu.

O sonho de José Lia era sair do país, mas diziam que na Europa, por exemplo, era raríssimo encontrar um computador. Talvez o Brasil fosse o melhor país do mundo para ele viver; nascera no lugar certo, enfim. Deus é perfeito, não erra. José Lia desobedecia às leis algumas vezes, pois furtava os supermercados. Mas depois ia se confessar com padres ortodoxos, e tudo acabava bem. O sinto muito sutil de Z. fora uma picada de cascavél. Estava de certa forma à mercê de tal pessoa depois dessa ter-lhe dito "não vou esquecer de você!"? Provavelmente. Pois que Z. me esqueça e não me mande notícias nunca mais até a próxima encarnação, pensava José Lia. Tomara que não renasçamos tristes porque não vivemos a anterior bem... ...