COMEMORAR A VIDA
Hugo Carvalho
 
 

À medida que a vida vai nos afastando do papel de atores principais, nos transformando, primeiro em atores coadjuvantes, depois em simples espectadores, o pote da nostalgia vai enchendo e, ao transbordar, às vezes, se converte em memórias ou simples crônicas.

É por tal razão que só agora, homem-velho, intento virar cronista, na companhia dos meus charutos. Com isso respondo a quantos me indagam dos motivos pelos quais eu não escrevia quando jovem.

A rigor fui um intenso missivista no passado. Avós, pais, tios, sempre foram destinatários de meus epistolares manuscritos, em tempos de saudades quando, vida cigana, sempre ou quase isso, as distâncias nos separavam.

Depois, com a Grande Separação, só sobraram as lembranças. Foram-se todos para as paragens que só o pensamento visita, a fé alcança e os braços, por mais que se abram, não abraçam.

E incontáveis cartas dos que partiram, a mim endereçadas há dezenas de anos, permanecem numa velha caixa de charutos, dentro da qual o tempo nunca passa.

Quando quero voltar no tempo, vou visitar tais papéis pautados que o tempo amarelou. Em muitos deles encontro, vivas ainda, recomendações dos meus “mais velhos” , como a de meu pai que, certa feita, me escrevendo sobre a obrigação que temos de devolver a nossos irmãos, o muito que recebemos – “derramar os esplendores da instrução”, dizia ele – me recomendava a participação prática na vida para poder desfrutar a plenitude de direitos.

Seguindo o velho conselho, escrever, portanto, passou para mim a ser uma forma de participar. E, na ausência dos destinatários de minhas cartas do passado, passei a contar com uma quase-multidão de pacientes leitores. Que me ajudam, tanto quanto meus charutos, a prosseguir, agora como ator-autor e, assim, poder comemorar a vida.