DE LABIRINTOS E SERTÕES: LEITURAS
Tatiana Alves
 
 

Nem se lembrava mais de como tinha sido seu primeiro contato com o mundo dos livros. Ganhara, ainda pequena, uma versão infantil d’Os Lusíadas. Embriagara-se com os deuses do Olimpo, e com as aventuras e desventuras dos portugueses, que para ela constituíam algum tipo de raça mítica, tantas eram as histórias contadas pelos antepassados. Naquele momento, navegava, com a esquadra portuguesa, por mares que tantas vezes revisitaria depois. Chorara com a triste história de Pedro e Inês, e entusiasmara-se com as peripécias e ciladas que marcavam a chegada às Índias.

Em seguida, caíra-lhe as mãos uma edição da Bíblia em quadrinhos. Tornara-se tão íntima de Moisés, de Davi, dos apóstolos, que chegou mesmo a recortar alguns, dando vida a personagens que para sempre marcariam o imaginário ocidental. Mudava-lhes as falas, num processo que muitos anos depois descobriria se chamar releitura, ou intertextualidade. Selecionara ainda outras passagens , como a do rei que sugerira que a criança disputada por duas mães fosse dividida entre ambas, o que para ela nada tinha de sábio. Criticara o comportamento de outros heróis do mundo judaico-cristão, como se lesse uma historinha qualquer, sem o ranço doutrinatório que posteriormente, no colégio de freiras, acompanharia tais leituras. Ainda bem que a Inquisição já havia terminado.

Sua relação com os livros era quase sensorial, e ela gostava de tocá-los, de sentir-lhes a textura, o cheiro. Travou contato com textos-chave do pensamento ocidental de um modo lúdico, o que lhe despertou o prazer da leitura. Cada lombada sugeria um novo mundo a ser explorado. Como um detetive empunhando sua lupa (Sherlock Holmes e seu impecável raciocínio dedutivo eram-lhe fascinantes), aquela investigadora-mirim embrenhava-se cada vez mais nos mistérios dos livros, nas inúmeras veredas daquela travessia pelo sertão das palavras. A cada leitura, a sua capacidade de compreensão do texto aprofundava-se, abrindo-se um leque de possibilidades, múltiplos olhares no decifrar ( e devorar) o tecido literário. Mergulhava nas entrelinhas, enveredando por um território mágico, envolvente, preparando-se para mergulhos ainda mais desafiadores. E tantas eram as viagens, e tantas as odisséias, que seu senso crítico se foi depurando. Descobriu, perplexa, que bruxas existem, mas não são, necessariamente, más nem possuem verrugas no nariz, mas que padeceram na fogueira por ameaçar o poder vigente. Descobriu que há poucos príncipes encantados no mundo, mas que nem por isso precisaria engolir sapos diariamente. Descobriu o instigante universo de Lilith, anterior ao tempo em que a mulher vinha da costelinha do homem. Encontrou , com Perséfone, a sabedoria e a transformação atingidas por quem se permite um mergulho nas profundezas, por mais assustador que pareça. Vagou pelos labirintos até descobrir que cada um tem seu próprio Minotauro dentro de si, e que o encontro com ele é necessário e enriquecedor. Percebeu que nem todo homem é Lobo Mau, e que não precisava se restringir à impotência da vovozinha ou à ingenuidade da netinha. Reconheceu a importância da liberdade ao vislumbrar a angústia de Pégaso preso ao arado, e novamente deu asas a seus sonhos, tomando o cuidado de não se aproximar demais do sol, aprendendo, com Ícaro, a valiosa lição. Finalmente, permitiu-se , como a Fênix, renascer, plena, de suas próprias cinzas, reconhecendo a capacidade humana de regeneração. Teria ainda que agradecer a Morgana, Capitu, Diadorim, e a tantas outras mulheres de papel, que lhe fizeram pensar o papel da mulher, e sua própria vida. E constatou que sempre poderia, como Penélope, desfazer a tela tantas vezes quantas fossem necessárias, para defender seus ideais. Que poderia, como Ariadne, representar a saída do labirinto para alguém.

Entrara na sala. Sabia que sua paixão pelos livros era tanta que os alunos a ouviam, curiosos em descobrir o que havia de tão deslumbrante naquele amontoado de palavras. A viagem estava apenas começando. Lembrando-se de Ulisses, sorriu. Pensando bem, isso era ainda mais sedutor do que o canto das sereias.