O ESCAPULÁRIO
Claudio Alecrim Costa

Empurrei o estulto do Virgílio no meio dos fieis que entravam na igreja como formigas sem direção, ansiosos por milagres e abraçados aos seus bricabraques para oferecerem em troca de salvação.

Encolhido, Virgílio, me olhava de viés sob anjos sistinos que flutuavam por toda a igreja, cujas sombras misturavam-se à atordoada multidão, empurrada por sopro infesto do tinhoso que brincava em casa alheia.

- Afonso, parece que estamos no inferno... – Reclamou Virgílio levado pela onda humana.

- Está blasfemando!

Fez o sinal da cruz o idiota e desatou a rezar para purificar-se do comentário impróprio.

No final do forrobodó, nós nos refrescávamos no bar do Gomes, onde bebíamos cervejas acompanhadas de generosas porções de iguarias inventadas pelo vaidoso cozinheiro da espelunca.

Ainda era cedo para que os pedidos fossem deferidos no mundo burocrático do reino de Deus. Mas quando Letícia entrou no bar, pude ouvir trombetas celestiais e ver uma luz etérea que iluminou toda a pocilga. Com vestido branco que contrastava com sua pela morena, a menina tinha a postura de uma dama. Juntava as mãos à frente do corpo esculpido por divina natureza, o que lhe acrescentava candura enquanto meus miolos cozinhavam pelos pensamentos tentadores que Deus certamente haveria de punir. Cabia a mim aproximar-me e, uma vez no caminho dos infernos, aproveitar o fruto proibido o quanto antes.

- Fique aqui, Virgílio...

- Aonde você vai, Afonso?

- Desgraçar-me...

Deixei meu melhor amigo inerte e, infausto, caminhei para meu amaldiçoado destino.

- Meu nome é Afonso, prazer...

- Letícia...

Curvou a cabeça e pude ver o generoso decote que cobria os seios à beira de uma explosão pela pressão do vestido. Um escapulário descia do pescoço e se escondia entre apetitosas maçãs colhidas no paraíso.

- Que coincidência!

- Do que está falando, Afonso?

- Tenho um escapulário igual ao seu...

Ficou da cor de uma beterraba, a doce jovem, e cobriu sua riqueza espiritual com bolsa e tudo...

- Desculpe! Desculpe!

- Não foi nada...

- Foi grosseiro de minha parte...Mas entenda que a religião para mim está em todas as coisas...

- Sinto-me melhor assim...

Passamos algumas horas conversando sobre tolices que me pareceram necessárias. Pois devia criar fiel reprodução da boa aventurança, como um falsário, para depois me esticar sobre minhas fantasias, embalado pela visão da mulher guardada por escapulário, acrescentando assim tempero ao prato de que já podia sentir o aroma.

Naquela noite, sonhei com chamas que cobriam meu corpo diluido em puro desejo no escuro onírico onde os amantes aproveitam para fazer o que não fazem sob a censura da luz.

Acordei cedo para encontrar Letícia. Tinha um plano bem pensado. Levaria o escapulário de minha tia para confirmar minhas palavras, ainda que fossem cinicamente transparentes. Depois a convidaria para um passeio pela cidade que terminasse em algum hotel barato. O que me dava segurança em tão simples empreitada era a certeza do castigo. Desde o momento que coloquei os olhos em Letícia, minha alma, como a de Fausto, estava vendida ao diabo. Por aquela mulher receberia minha pena. Havia preparado meu espírito, não sem antes rezar e pedir proteção para Virgilio, obediente cão que era...

Letícia estava nua sobre a cama com o escapulário pendurado no pescoço. Única peça usada pela linda mulher. O diabo ria de mim em algum lugar. Meu castigo veio na frente do pecado. Ou estaria o pecado consumado muito antes. Rezava, implorava e chorava feito criança. Não havia santo que fizesse minha espada levantar-se para a última guerra antes de arder no inferno. Letícia ajudava-me como podia...

- Isso acontece, Afonso...

- Não entende...Depois de hoje serei um desgraçado...

- Não consigo entendê-lo...

- Vendi minha alma ao diabo...

- Como?

- Menti o tempo todo...Não sou tão religioso assim...

- Eu também não...

- Não?

- Minha alma também foi vendida faz tempo...

- Do que está falando?

- Uso esse escapulário como desculpa para fartar-me da luxúria...

- Desgraça!

- Um bom tônico lhe fará um novo homem...

- Como é viver no pecado? Como é a cara do diabo?

- Como todas as caras que vemos... O pecado está em nossa cabeça e por ele é que padecemos como você agora.

- Não consigo uma ereção por loucura provocada pelo pecado?

- Por pensar no pecado, Afonso.

As palavras de Letícia se repetiram por muito tempo. Virgílio tentava me alegrar, mas não havia nada que me devolvesse a vida e a liberdade de antes. Embora contasse com o castigo, não imaginava de que forma aconteceria. Tratei de afastar-me do bar do Gomes e de mulheres. Tornei-me padre especializado e graduado em pecados e, por providência do Senhor ou por trato mal feito, minha vida dediquei a esse fim.

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