OUTROS QUINHENTOS: O REVERSO DA MOEDA
Doca Ramos Mello
 
 

Sim, sim, todos conhecem a velha história oficial, contada do ponto de vista lusitano, segundo a qual um navegador português veio parar nos torrões de Caetano Velloso, em singelas caravelas. (* Um aparte: no céu das embarcações, onde ficam os espíritos daquelas que na vida marítima não cometeram grandes pecados como fazer água, soçobrar, deixar os marinheiros na mão, etc, uma das caravelas de Cabral adora fazer pândegas e sua piada preferida é contar como foi que ela e suas companheiras chegaram ao Brasil; diz que enfrentaram “mares nunca dantes navegados”, bravios que só, e acidentes desconhecidos, sem instrumentos adequados ou grandes parafernálias, afinal corria o ano de 1500, era no peito e na raça... E rola de rir quando fala que sua imitação high tech, quinhentos anos mais tarde, não saiu do lugar; todas as caravelas de descobridores em geral acham divertidíssimo!).

Bom, mas de volta à esquadra, sabe-se que com ela veio um escriba, especialmente para registrar o evento, descrito com detalhes em famosa correspondência, etc., etc. É a versão da coroa. Desconhece-se, no entanto, o outro lado dessa história, isto é, as impressões deixadas pela cara.

Pois fomos atrás dessa versão e descobrimos um verdadeiro tesouro! Uma carta escrita pelo pajé Ubiratã Curimã Kietê, datada de 27 de junho de 1500, endereçada ao grande cacique Morubixaba Tuxaua Abu Açu Tucuruí, na qual são relatados os fatos do descobrimento do ponto de vista indígena. Usando uma mistura de óleo de babaçu e urucum, os índios deixaram relevantes mensagens, relegadas ao esquecimento talvez para favorecer interesses escusos, corrupção, falcatruas e mutretas, essas coisas que ainda perduram pelas terras brasilis, desafortunadamente...

Aqui, vamos destacar alguns trechos da missiva, dando ao povo brasileiro a chance de rever o descobrimento do Brasil e reanalisar melhor nossas heranças. Visto o idioma indígena da época ser ainda mais capcioso que o português lusitano daqueles idos, tornou-se necessária alguma adaptação na tradução. Também foram mantidas na forma original algumas partes grifadas pelos próprios índios e de árdua compreensão. Acredita-se em códigos secretos, piadas, considerações particulares, sabe-se lá...

“Abá, obá, grande cacique Morubixaba Tuxaua Abu Açu Tucuruí, como vai essa força? Pajé Ubiratã Curimã Kietê pede desculpas por interromper sua caçada, porém estão acontecendo coisas por aqui que até Tupã duvida, grande cacique precisa saber, muvuca da grossa, mumunha colonizante...

“Aportaram cá uns pálidos bastante peludos, trajados (ucuã, ucuã, teretetê!) muitíssimo esquisitos, cheios de babados nas camisas. Puxam os erres e os esses, cuspindo demais na tribo, que considera isso nojento, mas os homens – veja o Morubixaba -, dizem que são os nossos “descobridores”, rá, rá, rá, ita-itê cupuaçu, faz-me rir, a gente nunca se cobriu mesmo, é ou não é? Pois então, dizem também que tudo por aqui, do Oiapoque ao Chuí, é deles, e dão ordens, e querem ouvir reza, e pretendem mandar na gente...

“Povo soberbamente ignorante, esses homens não sabem o que é morici, nem jaci nem tietê, são brancos desbotados que nunca comeram mandioca e jamais viram um piolho, coisa mais impressionante...! Pajé prevê sangrentas contendas, pajé viu nas estrelas que esse pessoal vai se aboletar, vai querer ouro e montar padaria, até que um dia tragam um tal Roberto Leal para cantar e dar pulinhos num negócio chamado “vira”, mutuca ibiretê, guaecá!

“Sei dizer, chefia, que já há muitas cunhãs apreciando os cheiros desses homens, abandonando nossos guerreiros por esses bigodudos, o bicho vai pegar... Um deles até fez um show para a tribo, nossas mulheres gritaram caramuru, caramuru, todas bastante assanhadas, sei não... Morubixaba devia voltar logo, guerreiros, mulheres e curumins correm perigo, ainda mais que logo, logo, aparece por estas bandas o elemento negro, vem a miscigenação, o carnaval, iiiih, barequeçaba guaruaçu, me entende?

“Um dia, quinhentas anos de luas variadas, pajé sabe que vai haver festança para comemorar o aniversário disso que eles chamam de “descobrimento”, e vão convidar a tribo, mas ficarão arrependidos e então um cacique gordo e baiano vai mandar descer o pau-brasil nos nossos descendentes – barrados no baile, Morubixaba, barradíssimos.

“Pensando bem, umbu-açaba, ubiraci ti-ti-ti, grande cacique Morubixaba aproveite aí o curso das águas e dê no pé, porque a história já começou e não tem volta... Pajé está sabendo que um tal Caminha escreveu para o coroa lá deles, dizendo que por aqui, “em se plantando, tudo dá” – quer dizer, eles não estão pensando em pagar nada, não!

“Abaeté, inté! Itaquaquecetuba, morangaba, sacumé?

“E reze p’ro correio funcionar..."

Pajé Ubiratã Curimã Kietê