QUERES IR À CAPADÓCIA, MEU BEM?
Kalindra Baba

Eu poderia contar essa história de várias maneiras: ambientando-a na primeira metade do século XX, por exemplo — o que, aliás, ficaria perfeitamente cabível —, ou escondendo-me atrás de um narrador onisciente, que me livraria do julgamento de vocês. Entretanto, por ser um personagem muito importante com meus adolescentes dezessete anos, não resisti à tentação e deixei que os sentimentos fossem externados na proporção exata dos fatos que os têm provocado. Pareço esquisito ? Pois sou — asmático e esquisitinho (como costumam referir-se, aos cochichos, à minha pessoa). Asmático, de nascença — herança genética da minha vó Lélé, esquisitinho fui me tornando ao longo dos anos, devido muito à convivência com a família, e à forma por demais especial que ela sempre me dispensou.

Essa história começou quando Tia Lavínia notou que todos os dias o computador amanhecia quente. Nas primeiras vezes, ficava olhando, olhando, passava a mão no gabinete, ensimesmada, como que para checar se estava mesmo desligado. Acho que ela esperava que alguma luzinha vermelha fosse piscar, denunciando que alguém o esquecera ligado. A princípio, ainda me dispus a assumir qualquer culpa, mas com o passar dos dias, desisti — a situação poderia ficar séria demais: só nessa semana o vovô já tinha registrado o convite “Queres ir à Capadócia, meu bem ?” pelo menos três vezes. Eu vou explicar.

Nós moramos no Ascurra, bem no meio da ladeira que liga o Cosme Velho à Santa Tereza. Uma casa belíssima. A bem da verdade, três casas belíssimas, interligadas por portas internas na parte térrea, que se mantêm abertas ou fechadas, conforme o humor que nelas impera. Quando o tempo esquenta, após intensa troca de impropérios, as portas são fechadas, batidas mesmo, e trancadas à chave, selando, sem resquícios de dúvidas, a inimizade e o rancor “para o resto da vida”.

Na casa do meio moram a vovó Lélé e o meu avô Rafael, de quem herdei o nome. O vovô é um tipo de português bonitão, de fala alta e riso fácil. Não daqueles que você encontra atrás de um balcão de padaria, mas daqueles, raros, formado na Universidade de Coimbra, simpático, culto e carinhoso.Parece que possui um ímã que atrai todo mundo — os filhos, os netos, os sobrinhos, os cunhados, todo mundo da família vive em torno do vovô Rafael. Manda e desmanda em todos de uma forma tão natural que ninguém se dá conta que só se faz o que ele quer. Trabalhou a vida inteira como médico ginecologista e se aposentou quando completou 68 anos. Tem três paixões confessadas: o Vasco, o vôlei e os canivetes. Acabei descobrindo uma quarta, que mais tarde eu lhes falarei. Vovó Lélé, “ó Lélé !”, como ele tem o costume de chamá-la, é um tipo em extinção. Dona de casa do início do século — passado, bem dito. Toda a sua preocupação é canalizada para a administração da casa, confecção de cardápios, arrumação das roupas, providências que hoje em dia qualquer faxineira bem remunerada pode solucionar. Mas vovó Lélé faz questão absoluta de tomar a frente do expediente com a justificativa de que somente ela sabe “o jeito certo” que o Rafinha gosta. Trata o séqüito de empregadas a ferro e fogo, ignorando completamente o que sejam Leis Trabalhistas, descanso semanal remunerado, “essas bobagens de hoje em dia”. Igualmente em extinção são as duas mini feras Zozó e Fifí, representantes da raça pequinês que cohabitam com os velhinhos e são o terror dos calcanhares das visitas. A casa à esquerda é da Tia Lavínia, irmã de meu pai, que mora com suas três filhas (duas gêmeas) e um pixote da minha idade, que eu não suporto. Tia Lavínia perdeu o marido numa enxurrada em Petrópolis. Ela e vovó Lélé, além das diferenças naturais entre mãe e filha, acrescentam uma animosidade na disputa pelo cargo de Rainha do Lar.

Finalmente, na casa à direita, moramos papai (Luiz), mamãe (Regina Lúcia), meu irmão mais velho Rogério, e Regininha, minha irmã de 14 anos. Sem falar no Richard, nosso gato siamês e uns peixinhos do super aquário do papai, que não têm nome especial. Ainda existem a Tia Ledinha, o Tio Maurício, marido dela, e o Afonsinho, meu primo — mas eu não costumo contar com eles porque eles só vêm ao Ascurra nos domingos; então, não afetam demais as nossas vidas.

Desde que eu me entendo por gente, quer dizer, a partir dos 5 anos de idade mais ou menos, ouço o vovô falar da Capadócia. “Queres ir à Capadócia, meu bem ?”, uma frase que tem me acompanhado a vida e que, de quando em quando, ressoa na nossa casa. Quando eu era pequenino, pensava que a Capadócia era uma Terra Encantada, uma espécie de Pasárgada, uma Terra do Nunca, dos Contos de Fada, das Mil e Uma Noites. Tanto que muitas vezes, lembro-me agora, quando o tal convite era feito à vovó, eu saía saltando e berrando “eu também quero ir”. Só anos mais tarde é que tomei ciência de que a Capadócia era um lugar real, com pessoas reais, igual a Lisboa, Madri, Terezópolis, Búzios, Nova Iorque, Paris, onde eles costumavam ir todos os anos, no verão. E muitos anos depois é que eu fechei o círculo e percebi o verdadeiro conteúdo desse continente. Fui relacionando as discussões, as brigas, as choradeiras e gritarias, as situações que chegavam ao limiar da baixaria, e a quebra da tensão com a simples frase-convite “Queres ir à Capadócia, meu bem ?” Era um sinal, um código, para que o bate boca fosse interrompido, cessado. A partir daí tudo voltava à aparente normalidade. Pelo menos, é assim que eu percebo agora.

Mas, voltando à história do computador. Depois que o vovô se iniciou na técnica da computação — após ter se aposentado, ele entrou num curso para a terceira idade e gostou tanto que contratou uma professora para aulas particulares 3 vezes na semana —, ele se apoderou do único XP lá de casa e reinstalou-o na sala de música, ao lado do piano de cauda. Seu horário preferido para teclar era após 2 horas da manhã (“quando a casa está dormindo e ninguém vai me interromper”), o que descobri há uns três meses, quando numa noite acordei e, atravessando a porta divisória de nossas casas, fui procurá-lo para me dar um remédio para apnéia (o meu estoque havia terminado). Lá estava o vovôzinho, o meu, o da Regininha, o do Rogério, o nosso vovozinho tão amoroso, lá estava ele, com a câmera do Messenger ligada, dançando Summertime para uma mocinha da idade das gêmeas da Tia Lavínia. E a mocinha totalmente sem roupa, igual àquelas da Revista Play Boy (só que as da revista não ficam se mexendo na frente da web cam do meu avô), cantando e expondo de forma totalmente despudorada o material de trabalho de anos do meu vovô. Fiquei chateado. Fiquei chocado. Fiquei cheio de ódio. Depois, fiquei quietinho, só vendo. E vi, vi durante três meses aquele show noturno especial e privê. Até que Tia Lavínia descobriu a quentura do computador. Eu disse que não era eu que ligava, que eu era só testemunha. Meu avô veio de novo com aquele célebre “Queres ir à Capadócia, meu bem ?”. Só que dessa vez minha vó arrumou as malas e foi.

Hoje estão completando um cruzeiro de doze dias pelo Mar Negro, Turquia e Grécia.

Parece que adoraram !

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