A CAMINHO DO CÉU
Bia Lelles
 
 

Pela janela do ônibus observava o contorno da cidade com suas casas de telhados vermelhos. Um mundo novo abria-se a sua frente: novas cores, novos odores, novas peles...

Não se podia dizer que Genaro fosse um homem bonito, mas chamava a atenção pela grande estatura, além de um charme peculiar. O sotaque italiano era melodioso, tinha olhos azuis de uma profundidade envolvente, sorriso cativante e simpatia nata. Usava tudo isso a seu favor enquanto tentava conquistar beatas no intuito de vender-lhes bíblias. Invariavelmente tinha sucesso nessas empreitadas, o que lhe garantia o sustento e a possibilidade de peregrinar entre as cidades mais distantes.

Informou-se ali mesmo na rodoviária onde poderia hospedar-se. O hotel de fachada já gasta pelo tempo era simples, mas possuía um banheiro no quarto o que era de grande valia. Estirou-se na cama estreita, os sapatos ficaram jogados no carpete manchado. Adormeceu sem dificuldade.

Logo ao raiar do dia já estava pronto: terno simples, porém impecável; os cabelos negros penteados para trás, sapatos lustrosos e perfume sutil. Pediu uma média de pão com manteiga no bar da esquina e seguiu em direção à Igreja Matriz, única da cidade. Sempre mantinha uma distância segura de onde observava as beatas sem que pudesse ser visto. Escolhia as mais velhas e bem vestidas, normalmente eram vizinhas e ele as seguia até em casa, onde as convencia, usando todo o seu charme, a adquirir as maravilhosas bíblias abençoadas por sua Santidade, o próprio Papa. As velhinhas comoviam-se diante das lágrimas de Genaro, enquanto ele lhes contava como havia recuperado a saúde após prometer levar a palavra de Deus aos lugares mais distantes. Entretanto, precisa alimentar-se, vestir-se e manter-se apresentável para que pudesse ser recebido na casa de pessoas tão distintas como aquelas amáveis senhoras e para isso contava com a colaboração delas na compra de algumas bíblias. Quase sempre ganhava também o almoço do dia.

Uma garoa fina começou a cair enquanto Genaro esperava o término da missa das 18 horas e ele apressou-se em entrar na igreja, coisa que raramente fazia. Ajoelhadas e de cabeças cobertas por véus negros as senhoras entoavam os cânticos finais. Apenas um véu branco destoava dos demais: a cabeça era pequena e longos cabelos negros desciam por sobre os ombros delicados. Ficou hipnotizado. Precisava ver-lhe a face, o brilho dos olhos, sentir o perfume de seus cabelos.

Em meio aquele transe não se deu conta quando as beatas começaram a sair da igreja. O olhar ainda estava fixo na renda branca do véu e, de trás do pilar onde estava, pode contemplar o belo par de olhos castanhos que se escondiam entre o véu e alguns fios de cabelos. Quando deu por si estava a poucos passos da garota e num ímpeto de ansiedade jogou-se por cima dela. “Desculpe senhorita”, disse apressando-se em juntar o terço e alguns folhetos que ela trazia nas mãos e havia derrubado com o encontrão. “Não foi nada”, ela respondeu abaixando-se também. Genaro pode ver, por entre a fenda da saia, a pele alva das coxas de Catarina, um desejo cego apossou-se de seus sentidos. “Posso lhe pagar uma pipoca?”, perguntou gentilmente já devolvendo os objetos da garota. Ela recusou, mas ele insistiu caprichando no sotaque. Queria desculpar-se por ser tão atrapalhado. Num papo animado acabou por acompanhá-la no caminho para casa.

Com os olhos arregalados de terror Catarina se debatia sob o corpo de Genaro. Amordaçada, as mãos presas por uma fita adesiva sentia o mato roçando-lhe as coxas alvas. “Não pense que me engana, mocinha”, dizia ele em tom sarcástico. “Todas vocês são iguais, se fingem de santinhas, cheias de Ave-marias mas eu bem vi quando me mostrou suas pernas”. Catarina gemia entre lágrimas de pavor, sentia a morte lhe rondando. “Nunca mais serei enganado por olhares angelicais, vou livrar o mundo de todas essas falsas santas”, ia falando enquanto retirava da bolsa, onde carregava as bíblias alguns instrumentos. “Vou te purificar, menina. E te mandar pro céu, antes que se perca na terra.”

Já não usava mais o falso sotaque. Cuidadosamente cortou as roupas de Catarina que se debatia com mais fúria a cada momento. “Quieta! Ou não terá sequer a chance de chegar ao céu! Te mando direto pro inferno!”. Primeiro raspou todos os pelos pubianos, depois as pernas e axilas. Cortou parte do cabelo e juntou tudo no centro do véu branco. Catarina choramingava já sem esperanças que pudesse sair ilesa dali. Nua no meio daquele canavial escuro, não conseguia entender como havia chegado naquele lugar. Genaro fechou os olhos e alisou seu corpo macio pela última vez. Deixou que sua mão corresse por entre as pernas, acariciou os seios pequenos. Então, deslizou os dedos sobre os olhos da menina e pediu baixinho que ela se acalmasse. “Logo você irá encontrar os anjos”. Ajoelhado, orou por aquela alma perdida, rogou que os anjos a perdoassem de seus pecados. Catarina percebeu que o ritual estava chegando ao fim e novamente tentou livrar-se das amarras batendo as pernas no corpo de Genaro. “Você não vê que a estou salvando?”, perguntou enfurecido. “Não quer ir para o paraíso, mulher desgarrada?”. E com golpes furiosos acertou o ventre de Catarina que deixou-se ficar em meio a uma poça de sangue. A menina ainda soluçou enquanto a vida deixava seu corpo já inerte. Exausto, Genaro rogou aos céus que perdoassem os pecados da menina.

Pierre aguardava na porta da Igreja Matriz enquanto as carolas desciam as escadas em animada conversa. Escolheu um grupo para seguir enquanto treinava mentalmente o sotaque francês. Na pasta carregava as bíblias santificadas, diversos santinhos, tesoura, um aparelho de barbear, um longo punhal e alguns punhados de pêlos embrulhados em pequenos véus brancos.