PEALO DE ULTRAJES
Eduardo Prearo
 
 

Um cheiro metífico saía do ralo do banheiro. E Cristian, que não dava um trato na casa havia séculos, nem ligou. Vestiu um terno preto com dificuldade, atirou pratos sujos pelo chão, gritou feito um maluco um monte de bobagens. Precisava de uma faxineira, mas e o dinheiro? Catou os cacos, jogou-os no lixo, tentou arrumar a cama, saiu da casa imunda, trancou a porta.

No ponto de ônibus havia gente que o olhava como se ele fosse metuendo. Nem sempre homens de meia idade são metuendos, pensou com seus botões. E sentiu-se um monstro, quando agora dentro do coletivo, uma senhora obesa começou a gritar que estava feita justiça. Sim, era pra ele, era pra ele. Teve vontade de chegar até a senhora e perguntar-lhe se era pra ele. Mas no final, claro que não seria.

As ruas estavam meio desertas. Era sábado? Sim, era sábado. Algumas pessoas o abordavam para pedir moedas, mas ele simplesmente não tinha moedas. Os países do terceiro mundo eram a depressão cristalizada dos primeros. Foi andando sem rumo e uma raiva dentro dele crescia, mas não era raiva de macho, era raivinha.

Já de volta a casa, apesar de na voz da populaça desconhecida ele por vezes ser sem-teto, Cristian ligou o televisor: enlatados de suspense. Desligou o televisor e ligou o rádio: jazz. Desligou o rádio e sentou-se defronte da máquina de escrever. Pensou em escrever um conto, mas de repente percebeu que não sabia mais português. Abriu a janela e alguém gritou: veado! Nunca fui do bem. Encurralado, resolveu tomar haldol, e depois de uns quinze minutos sentiu-se um pouquinho melhor. Ligou para um samaritano que lhe disse que amizade é fundamental. Fundamental (adj): essencial, indispensável, básico. Cristian jogou-se na cama e caiu em sono profundo.

- Olá, Cristian.

- Quem é você, como se chama?

- Anne.

- Que fazer básico comigo? Sei que estou dentro de um sonho. Pois olhe, daqui a pouco posso surtar dentro dele.

- Você precisa de ajuda.

- É essa gente desconhecida me chamando de bichinha. Uma nuvem negra assim surge vez ou outra.

- Não ligue para o que os outros dizem.

- Mas quem deve ouvir agora isso são eles.

- Seu pensamento está divorciado da realidade, mas voce não percebe.

- Não percebo muitas coisas. Sou ignorante.

- Sim, pense bem. Ninguém é tao infeliz a ponto de ultrajar quem não conhece. No entanto, talvez seu magnetismo...

- Meu magnetismo? Creio que você ache que possuo tendências criminosas.

- Nada do que você já fez foi singular, mas a forma como você fez talvez tenha sido. Nao deixe esse pealo de ultrajes lhe dificultar a caminhada. Livre-se dele ou pelo menos imagine que ele inexiste. Adeus.

Cristian levantou-se às nove, ou seja, madrugou. Olhou-se no espelho e sentiu-se tudo de ruim que já haviam dito sobre ele. Com que roupa sairia, não sabia. O pneu esquerdo aumentara. Certamente foi por causa do doce de leite que comera na véspera. Talvez fosse melhor ter ficado na cama.

O telefone tocou às nove e trinta e quatro. Cobranças? Ué, quase ninguém tinha esse número de telefone! Era uma tal de Suzana não se sabe das quantas. Cristian ganhara uma passagem para Paris, com direitos interessantes. Ele então disse à mulher que queria sua parte em dinheiro, pois tinha medo de estrangeiros. Não, falou ela, não podemos. É ir ou não ir. O senhor foi o sorteado do nosso site.

Dez dias depois...

- Aqui está sua passagem, vagabundo. Boa viagem.

- Obrigado.

O aeroporto estava lotado, pois grande parte da população também de súbito resolvera ir para Paris. Uma mulher ruiva começou a esmurrar uma parede, dizendo para o ar que não aceitava e que não aceitava. Vai saber o quê, pensou Cristian, que carregava uma pequena sacola, contendo um par de sapatos, duas cuecas, duas camisas, duas calças e um terno, além de uma necessaire.

Quatro horas depois...

O aeroporto tinha um menor fluxo de pessoas. Cristian estava sentado em um banco, dormindo. O avião partira para a Europa sem ele; e enquanto o primeiro já devia estar sobre as nuvens, o último, ou seja, Cristian, estava sonhando, e sonhando com Anne.

- Olá, Cristian.

- Oi, Anne.

- Desanimado?

- Estou confuso. E, por favor, não venha me dizer que isso também já aconteceu com você. Enquanto a miséria total não chegar, sei que estarei livre de qualque pealo, mas somente para a solidão.

- Tem conversado com alguém?

- Tem me feito mal conversar muito. Fico apavorado, imaginando que não suo o suficiente para conseguir as coisas.

- Isso é uma crença.

- Não, não é não. Talvez eu devesse ter começado a trabalhar mais cedo, com uns treze ou quatorze anos, e não ficar varando as madrugadas, estudando.

- Por quê? Bom, a melhor escola realmente é a vida. Mas você tem se esforçado para entender certas coisas por si próprio, eu sei. Também sei que você é um adicto.

- Não dei certo em São Paulo. Meu Urano está mal, vai ver é isso.

- Você acha então que é preciso ser altruísta para dar certo em São Paulo?

- Por que você existe e me mimoseia, hein? A decisão que tomo agora é a de voltar para minha vida de sempre, para os sub-empregos quando tem, e para minhas tentativas de me tornar um escritor. Adeus, Anne.

O miasma saía do ralo do banheiro. Cristian lavou a pouca louça, tomou banho, espirrou um perfume barato no pescoço, reiniciou o computador travado. Xingou Doris de tudo quanto é nome, quando viu que a gatinha defecara no chão da sala. O animal foi acuando até um canto e ali permaneceu, agressivo.