A LAGOA TRISTE
Fábio Vanzo
 
 

I

Acordara de um sonho com pássaros no fim da madrugada, em revoada por entre as árvores do fundo do quintal, trinando, piando e cantando de forma irritantemente alta e desordenada. No sonho, saíra de casa, em meio à névoa fria e úmida das primeiras horas, e tentara espantar as aves de mau agouro com um pedaço de madeira.

Já indo para o trabalho, horas mais tarde, ainda cansado da noite de sono conturbado, senti um odor terrível de morte, e podia jurar que, numa bolsa grande e pesada que um senhor carregava junto à porta traseira, estava um cadáver despedaçado.

Tive receio de tomar a bolsa dele e abrir. Talvez não fosse nada, mas parecia pesado, e o cheio vinha de lá, certamente vinha de lá.

Desci do coletivo, atordoado, e caminhei sob o sol quente e seco de outono. Cansado, com o corpo dolorido, senti a vida marchando sobre minha pele estendida através das dimensões da realidade, como um pedaço de couro.

Afinal, se a vida era minha, porque era alienado dela, porque tão pouco me restava da minha própria existência?

Estava cansado do casamento, dos amigos, do trabalho. Cansado de compartilhar fracassos, invejar sucessos e estar sempre em dívida com inúteis conselhos. Cansado de dever satisfações aos patrões, aos amigos, aos parentes, à esposa, aos filhos, à sociedade, a Deus, a si mesmo.

Quando mais envelhecia, mais criança parecia se tornar, de tão escravo, dependente, vigiado. Quanto mais dinheiro ganhava, mais parecia gastar em coisas que não serviam para nada.

A vida era uma roupa que não me servia. Uma herança de bens que não valiam nada. Mais vida era menos vida. Parecia estar morto, à espera da ressurreição que nunca vinha. Quanto mais vivia, menos vida parecia acumular, menos parecia entender do já tão pouco que desejava.

Desejava a morte todos os dias, ao acordar. E prendia o choro em algum lugar no meio do caminho entre a alma e os olhos, ao colocar a cabeça pesada no travesseiro raso, e constatar que ainda existia.

Queimavam-me a pele as mãos que me cumprimentavam todos os dias, e as vozes que me chegavam aos ouvidos pareciam sempre vir em línguas estranhas. Parecia que sempre alguém me seguindo, vigiando, à espreita. Eu não me reconhecia em ninguém, não me sentia representado por nada, não parecia fazer parte de lugar algum.

Sentia-me sempre solitário, onde estivesse, aonde fosse. Não era tristeza; mais que isso, menos que isso, era indiferença. Como se eu não pertencesse àquela vida, àqueles lugares. Não me identificava com ninguém.

Mentiras e clichês da arte, isso que minha vida era. Uma chama distante perante o sol. Nada me satisfazia. Ninguém me satisfazia. Mulher, filhos, amigos, amantes? Ora coadjuvantes que eu usava em minha encenação, ora parasitas que me bebiam o sangue.

Pessoas sofriam com mentiras e dúvidas, eu sofria com verdades e certezas. A cada instante, se renovava em mim a sólida experiência da vida áspera, real, sem vestígios de compaixão nem o alívio úmido de uma ilusão que consola como os lábios de um beijo quente.

Um pedaço arrancado por vez, segundo a segundo, pancada a pancada, em mil gotas de sangue pingando nos passos e espaços por onde eu andava. E não havia costume, a dor era paciente, intermitente, e se renovava sutilmente entre as frestas de cada caco pontiagudo de realidade.

Sim, a realidade era um mosaico aleatório, imagens cortantes e deformadas de pura loucura e extremo horror. Ruínas grandiosas e antiqüíssimas de uma civilização que nunca existiu.

A vida era repleta de inimizades veladas e relações de conveniência. Mesmo a paixão, o amor e a amizade tinham prazo de validade. Até a verdade era uma mentira.

Tudo isso parecia vil, mesquinho, abjeto, mas éramos todos assim. A diferença era minha consciência disso. O que, aos olhos dos outros, me fazia ainda pior.

Todos me olhavam com desprezo, que, no fundo, era desejo. Era desejado, invejado, por ser menos escravo do que eles. Não livre, e sim menos escravo. Tentava fugir. Lutava pela liberdade.

Era minha arrogância, meu cansaço, imenso tédio de toda a vida, de todas as pessoas, todos os lugares. Cansaço que se erguia das profundezas, cansaço que despencava das nuvens.

Restavam-me as bebidas destiladas e fermentadas, cigarros legais e ilegais, café forte, amantes. Erva, pó, cafeína, uísque, cerveja, tudo se equilibrando para desequilibrar. Apenas companheiros da solidão. Solidão que havia se tornado, nos últimos tempos, quase um vício.

Sexo sem compromisso, drogas para esquecer, drogas para lembrar. Entorpecia-me para agüentar o dia-a-dia, pois a própria verdade era a mais insana alucinação. As doenças, a culpa, a ressaca e o cansaço.

Trair minha esposa e mentir para meus filhos era ser fiel a mim, verdadeiro comigo. Afinal, dia após dia eu representava meu papel de cidadão pagador de impostos, cristão praticante (uma vez por semana na igreja), trabalhador assalariado, marido, pai de família.

Torcia por um time de futebol, votava sempre no mesmo partido político, tinha meus programas preferidos na televisão, almoçava domingo com meus pais, fazia trabalhos voluntários. Sentia-me culpado quando via crianças pedintes nos cruzamentos. Achava-me impotente quando via pessoas morrendo no Oriente Médio.

Tinha dinheiro no banco, seguro de vida, santo protetor, animal de estimação, flores no jardim. E tudo era sempre a mesma coisa, sempre uma coisa junto a outra, defronte da outra, depois da outra. Tudo organizado, mesmo na desorganização, tudo seguia um padrão, até o erro e o caos eram previsíveis.

A vida era sempre a mesma, e tudo era vida. Todo mundo vivia e ninguém parecia satisfeito. Era a mesma vida desde sempre: você nascia e morria a mesma pessoa. Portanto restava a tantos a ilusão de buscar a felicidade vadia, ou de se enganar alegando um sentido à vida, uma felicidade em gestos banais, num ato qualquer.

Tudo podia ser resumido em instinto de sobrevivência: precisávamos dos outros, precisávamos de experiências, sexo, dinheiro, comunicação. Por isso vivíamos em sociedade.

Eu vivia e, mesmo assim parecia alheio à vida, distante dela. A vida estava passando, tudo estava acontecendo, a todo momento, em toda parte. Respirava vida, bebia e devorava a vida. Respirava e excretava, tudo era vida. Vida entrava pelas narinas, saía pelos poros. Pensava na vida, sentia a vida.

Não por gostar de viver. Era como presente inútil e ignorado que a criança ganha e, quando tirado dela, passa a ter valor, ainda que não lhe servisse para nada. O apego era maior que o desprezo.

Ah, eu vivia desde que nascera. E não me era o bastante. A vida me fugia; quanto mais eu vivia, menos parecia viver. Sempre estava além do meu controle. Na verdade eu não vivia, morria. A cada instante morria, progressivamente, em um processo de degeneração e decrepitude.

Cada momento vivido era irremediavelmente perdido, como as paisagens que eu via apenas uma vez, da janela do ônibus. Como o horizonte, que sempre se afasta do navegante. Como estar perdido no deserto, com areia nos quatro sentidos.

Sentia-me preso, como se as árvores e os prédios se estendessem até o zênite. O céu parecia o chão, pesado, sólido e cinzento. O mundo girava rápido demais, me deixando enjoado. E o Sol sempre a pino, a Lua insuficiente para iluminar. A qualquer momento parecia sair pela tangente. Mas a gravidade esmagadora me mantinha firme ao chão, mal permitindo que eu caminhasse. Talvez eu precisasse voar, mas era tão pesado. E me faltaria o ar lá em cima. Eu teria medo de altura. E tudo me pareceria ainda mais insignificante.

Todos eram inimigos, predadores. Viver era uma competição pela sobrevivência. Nenhum lugar me parecia seguro. Ninguém era confiável. Não existia paz, não existia paixão. Ninguém era digno de Deus, nem digno de perdão.

Cada dia, uma nova caçada. E não havia prêmio para os vencedores. Apenas a consolação que era o direito a viver por mais um dia, de infinitas horas enfileiradas, prontas a desabar.

Eu era tão hipócrita! Enganara a mim mesmo, de tanto mentir, fingir, fugir e dissimular, a ponto de acreditar em tudo. Minha integridade era relativa e criava um bloqueio contra qualquer autocrítica.

Mas não costumava julgar os outros. Sem extremismo, por favor. Outras vidas, tão essencialmente iguais às minhas, definitivamente não me interessavam. Eram apenas gado pastando até o dia de ir ao matadouro, porcos engordando às custas dos restos de quem vivia de verdade.

Tanta maldade, tanta maldade! O mundo era hostil, e não me restara nenhuma ilusão. Acumulara tanto rancor!

O mundo não era grande, nós é que éramos pequenos e parecíamos diminuir, dia após dia, cada vez menores, a ponto de cair em qualquer fresta entre dois segundos ou ser carregado por qualquer vento, pela enxurrada, ou ser queimado até as cinzas pelo sol.

Às vezes eu piscava os olhos e a paisagem parecia mudar, mesmo dentro de minha casa.
Eu olhava para um canto, olhava para outro e, voltando os olhos para a primeira vista, vultos passavam nas arestas, mais rápidos que meus sentidos, deixando rastros na escuridão e na minha retina.

Eu oscilava entre o desespero e o conformismo, a derrota e a revolta, a arrogância e a carência, a tristeza e a indiferença. Como representasse papéis, eu trocava de espírito como de roupa, e nada me servia.

Meu ser não me caía bem; eu me sempre nu. A alma era fria e desconfortável. Meus sentimentos eram como tecidos grosseiros de costuras mal feitas. Meu peito pesava como se houvesse rochas dentro dele. Não era o coração; este, pequeno, quase não incomodava, e mal podia ser visto, quase nunca era notado.

Parecia que a vida, de tão dura, entrava pela boca e pelas narinas, cheia de pedra e pó, e solidificava dentro de mim, insofismável, absoluta. Era a maior prova de que eu realmente vivia, e da pior maneira possível, que era estando vivo. Ou não? Haveria como quebrar essas correntes?


II

Assepsia às avessas, em busca de diferenciação: decidi me entregar à pobreza, à sujeira, à solidão. Negar tudo que fosse humanidade e deixar só o que houvesse de animal e ancestral em mim.

Tornei-me relapso quanto à higiene pessoal e do meu espaço de convivência. Comecei a tomar banho somente quando a sujeira me incomodava, quando o suor fazia coçar a pele e o couro cabeludo, quando o mau cheiro entrava até por minhas próprias narinas.

Foi um longo período de readaptação, de seguir o caminho contrário, de voltar às origens que nunca tive, é verdade. Ir ao banheiro e não lavar as mãos, limpar sujeira de comida nas roupas, não fazer a barba, não cortar nem pentear os cabelos.

Obviamente minha família e meus colegas de trabalho se incomodaram bastante com isso, até o limite do suportável, até porque, como não foi um fato anunciado, o horror de todos foi ainda maior com a gradual tomada de consciência para o fato de que eu estava me tornando praticamente um maltrapilho.

Infantilidade, diriam alguns. Rebeldia sem motivo, para outros. Mas era somente liberdade transgressora, afronta aos valores, à dita civilização. Expressão de niilismo, o que quer que isso significasse.

Ia mal vestido ao trabalho, às vezes a semana inteira com as mesmas roupas. Obviamente todos reparavam, mas não comentavam nada.

Passei a não falar mais com ninguém, nada além do estritamente necessário para o cumprimento burocrático das minhas funções. Começaram a me evitar e a fazer comentários pelas costas. No refeitório, nos corredores ou no banheiro, era só eu chegar que todos saíam.

Fui chamado para uma reunião. Com falsa preocupação quanto à minha saúde e minha vida pessoal, meus supervisores me inquiriram quanto ao meu comportamento atípico e discutiram possíveis causas e soluções.

Tentaram me explicar que aquilo "não era prejudicial só à empresa, mas também a mim e a meus colegas de trabalho", e que só desejavam o melhor para mim, não só profissionalmente, mas no âmbito pessoal, como se fossem mais que patrões, mas amigos.

Evidentemente que os despistei e os fiz desistir, com respostas desinteressadas e vagas, de qualquer tentativa de invadir minha intimidade ou me deixar nas mãos deles por conta de possíveis gestos de pretensa generosidade. Mandassem-me embora, se quisessem.

Parentes e vizinhos vinham até em casa, certamente a pedido da minha esposa, tentando saber o que estava acontecendo comigo. Dadas as minhas respostas evasivas e quase rudes, aconselhavam que eu procurasse ajuda médica (um psiquiatra, talvez). Minha mãe sugeriu chamarem um sacerdote.

Do ridículo inicial da situação, achei que seria divertido e, surpreendentemente, aceitei e fui a uma igreja católica conversar, entre uma missa e outra, com o padre da paróquia mais próxima.

Assustei-o, a despeito de sua sincera boa vontade, com meu arrogante e desanimado niilismo. Ele perguntava sobre meus sonhos, eu dizia não ter nenhum; perguntava sobre amigos e amores, eu desdenhava da importância daquilo.

Quando a conversa se encaminhou, de forma previsível, para o campo religioso, as coisas ficaram ainda mais difíceis para o homem de Deus: qual um anticristo, um iconoclasta, deixei-o sem reação ante meu desprezo por sua caridade emotiva. Nada pessoal, claro, mas não havia como levar a sério alguém dizendo que me Deus me amava e tinha um grande plano para minha vida, desde que eu confiasse em seus desígnios e tivesse paciência.

A mesma história que eu ouvia desde os tempos de catequese, no fundo do quintal da casa da mãe de um dos meus amigos da rua de cima. Deus era bom, eu é que era impaciente, ingrato, etc.

Respondi-lhe que não tinha nada contra Deus, apenas o ignorava, mesmo acreditando nele. Soubesse ele ou não o que fazer comigo, não era mister que eu me preocupasse com aquilo; afinal não adiantava nada, meus anos de teísmo mais ou menos ativo não deferiam em nada daqueles meus últimos dias de auto-abandono e solidão.

Interessante o quanto cobram das pessoas uma alegada maturidade depois de certa idade, como se você não tivesse direito de tomar nenhuma decisão drástica após a juventude, como se o destino devesse ser traçado e nunca mudado.

A vida era menos minha e mais dos outros, da sociedade. Eu devia satisfação, pelas mínimas coisas, a tantas pessoas que às vezes até perdia a vontade de tomar certas atitudes.

Havia uma linha invisível, de preceitos e atitudes, que separava etapas da vida de forma rude e arbitrária: jovens deviam fazer isto, adultos aquilo, velhos sabia-se lá o quê.

Seríamos personagens de um videogame de Deus, o qual estabelecia fases que deveríamos atravessar sucessivamente e progressivamente, sem atraso nem adiantamento?

III

Desempregado, começou a faltar mantimentos em casa. Caridosamente, deixei de comer, a fim de que sobrasse mais à minha mulher e aos meus filhos.

Não andava com vontade de comer mesmo, e qualquer coisa que me fizesse parar de ser acusado o dia inteiro, com olhares de reprovação e reclamação pelos cantos da casa, era válido.

Após alguns dias bebendo apenas água, podia sentir o suco gástrico corroendo as paredes de meu estômago. A cabeça doía. Bebia cerveja, bebia café. Tentava não dormir, a fim de aproveitar mais aquele estado entorpecido, mas, às vezes, desabava de cansaço.

Dor de estômago, dor muscular, dor de cabeça. A dor era um sinal, a voz divina. Sentir dor era existir. E eu precisava sentir a vida, progressivamente, rumo ao fim, ao meu horizonte de eventos.

As discussões em casa, cada vez piores, já não me incomodavam. Saía pouco de casa. Passava dias inteiros na cama.

Não reconhecia mais as pessoas que moravam comigo. Aquela mulher e aquelas crianças pareciam ter surgido do nada, de uma hora para outra, ali naquele espaço, sem que eu pedisse, sem que me avisassem.

Pareciam mais estranhos a mim do que eu a elas; não pareciam parte da minha vida. Eu não me reconhecia naqueles seres tão diferentes de mim. E, no entanto, havia convivido tanto tempo ali, como se fosse outra pessoa.

Os dias às vezes passavam aos pares, às vezes custavam a passar. Não havia mais controle sobre as minhas horas.

Minhas memórias não pareciam me pertencer. Eram fatos distantes, como lendas ouvidas na infância ou lidas em algum livro empoeirado, nas noites escuras de uma biblioteca cheia de mofo.

Podia parecer ingratidão, e talvez fosse mesmo. Mas eu não queria me sentir culpado uma vez mais. Após uma vida inteira de culpas e desculpas, eu estava decidido a simplesmente deixar a existência fluir, livre de moral e consciência.

As contas iam se acumulando na escrivaninha do quarto, na cantoneira da cozinha, e minha mulher reclamava, reclamava, reclamava. Credores mandavam cartas e ligavam, cobrando, reclamando, ameaçando. E eu nem me importava em honrar aqueles compromissos estúpidos e arbitrários; pagava quando dava vontade, quando cismava, ou quando desistiam de reclamar, só para fazer o contrário do que esperavam, do que me mandavam fazer.

Amigos e parentes foram desistindo de mim; talvez nunca quisessem mesmo ter ajudado. Ninguém se preocupava com ninguém. Mesmo minha esposa e meus filhos deviam pensar mais no estrago que eu estava fazendo a eles do que a mim mesmo.

Afinal, eles dependiam de mim e eu não dependia deles. Não dependia de ninguém. Ou pelo menos estava caminhando para não precisar mais dos outros, a despeito de tudo que nos ensinavam na escola sobre o homem ser uma criatura social.

Para espanto de minha esposa e dos vizinhos, peguei meus livros e discos e coloquei-os na porta de casa, junto do lixo, para quem quisessem pegar. Não me diziam mais nada.

E assim fui levando a vida, de qualquer jeito, entre atitudes estranhas que provavam que eu estava ficando, enfim, normal, pensamentos desconexos que enfim me levavam à lucidez.

Era preciso me diferenciar. Fechar-me no meu mundo, como se fosse à parte dos outros, visto que eu não conseguia sair da sociedade. Meu mundo era paralelo, alheio, à parte de tudo.

Até que um dia tudo aquilo me cansou, definitivamente.

Em uma discussão familiar sobre meu descaso com a vida e com os parentes, ouvi a frase fatídica, vinda de minha esposa:

"Se está tão cansado de tudo, por que você não vai embora de uma vez por todas?".

IV

Assim, gratuitamente, como uma história escrita às pressas, sem muita vontade, lá estava eu, fora de meu lugar, meu lugar-comum.

Como uma história que demorou muito a ser escrita, tanto que o autor perdeu a vontade de continuá-la, e tentou realizar seu desfecho o mais depressa possível, sem se importar muito com qualidade, somente para exorcizar os últimos fantasmas do passado a fim de ser assombrado por outras almas inquietas e atormentadas.

Como história escrita às pressas, filme de baixo orçamento, peça de teatro sem atores, assim minha vida solitária de fato começara, sem que eu tivesse tempo de ensaiar meu novo papel; minhas atitudes seriam todas improvisadas, conforme o desenrolar de cada ato.

O acaso seria meu autor, meu diretor, meu criador. Sob seus caprichos, eu dançaria como marionete, seria manipulado como fantoche. Longe de qualquer imposição da sociedade, sem horário, itinerário ou destino. Sem compromisso, sem culpa, sem coisa alguma.

Mas, longe de esperar a redenção, eu sabia que devia me entregar, de forma totalmente submissa, ao que me esperasse naquelas terras inabitadas para onde me dirigia. Longe de mim pensar em dominar a vida selvagem; na verdade, eu só desejava ir até o fundo de tudo, e encontrar o que fosse que me esperasse lá.

Monólogo: eu, único ator no palco vazio, cheio de ornamentos envelhecidos, de produções anteriores, contracenando comigo mesmo diante de um teatro abandonado, cheio de cadeiras vazias.

No ringue, eu comigo mesmo, eu contra mim, vencedor e derrotado, vivo e morto; olhos nos olhos do meu inimigo.

Peguei meu carro e saí, ao amanhecer, e fui até onde deu a gasolina. Andei a pé, corri, marchei, trotei, até encontrar carona. De carona em carona, fui longe, até gastar o pouco dinheiro nos bolsos para pegar trens de longa distância. Mais para dentro, para longe, para o interior. Acabadas as moedas, mais caminhada e carona.

Por onde passava, me despedia silenciosamente das pessoas, procurando guardar aqueles rostos, que seriam meu último contato com a humanidade.

Parte de mim queria seguir, parte de mim queria retornar. Pensava, por vezes, em uma solução menos drástica, como refazer a vida em outra cidade, um grotão rural qualquer, mas mantendo um mínimo elo com a civilização.

Eu temia não sobreviver sozinho. Quando era tomado pela dúvida e pelo medo, dava um grande gole na garrafa de aguardente que eu havia levado comigo e renovava minha coragem estúpida (toca bravura pressupõe um bocado de burrice) para seguir minha empreitada.

Quando perguntado pelas pessoas com quem eventualmente cruzava ou me davam carona, respondia que estava em viagem espiritual, em busca de meu verdadeiro eu, o que não deixava de ser uma certa verdade, com a "leve" diferença de que eu procurava mesmo era perder a mim.

Em vários momentos, meus olhos cruzavam com os daqueles estranhos, os quais perscrutavam meu medo nas pupilas dilatadas e nos lábios trêmulos. De trás dos meus olhos, as lágrimas queriam verter e pedir socorro, abraço, um alento mínimo, que fosse. Mas depressa eu disfarçava e retomava meu jeito de poucas palavras e muita reflexão.

Uma selva, um matagal. Enfim, depois muito viajar, eu chegara. Era ali meu destino. O lugar de quem não pertencia a parte alguma.

A partir daquele momento, não haveria mais como culpar ninguém, além de mim, pelo que me acontecesse.

A excitação e o temor corriam pelas mesmas veias do meu corpo, em um turbilhão de medo e desejo, em que milhões de anos de evolução e História clamavam legados infindáveis de tragédia e dor.

Pensei que a primeira noite sozinho no escuro fosse a pior. Enganei-me: foram muitos dias e muitas noites de pavor.

A escuridão, a chuva, a névoa úmida e grossa que dificultava a respiração, o intenso calor durante o dia e o frio congelante nas madrugadas.

Tinha a impressão de que tudo se movia ao meu redor. Ruídos de toda a fauna ecoavam por entre as árvores, reverberando nos galhos e nas pedras mais altas.

Fui picado por toda sorte de insetos terrestres e alados. Tive alergia a plantas e arbustos. Minha pele, meus cabelos e até meus lábios ficaram grossos e secos, quase impermeáveis. Tive uma forte gripe, fortíssima. Tremi e delirei de febre, suando frio por dias a fio. A qualquer momento, eu poderia ser morto por algum animal venenoso ou carnívoro.

Não tinha coragem nem forças para me mover. Sob o relento, protegido parcialmente apenas por a copa de uma grande árvore, não saía nem para conhecer a região, nem para procurar alimento.

Era a revolta da natureza e o desprezo da civilização por mim.

Sofri, chorei, me arrependi. Desespero em sua mais pura forma, o ser social gritando como criança sozinha dentro de mim. Tentando voltar para o útero enganosamente acolhedor da sociedade, eu me prostrava no chão, a cabeça batendo contra a terra.

Não era tão forte quanto pensava ser, mas, ainda assim, o orgulho e a mágoa com tudo e todos me impelia a ficar no meu caminho sombrio rumo ao desconhecido.

Todos os meus pensamentos e sentimentos eram tão confusos, contraditórios, sem maior substância, inconsistentes, como se minha existência ali fosse feita de cacos da minha vida anterior, de uma vida quebrada, jogada ao alto e reconstruída com os pedaços, colados aleatoriamente, junto com sujeira do chão e resto do que mais houvesse por perto.

Era como um pesadelo: cada memória, cada acontecimento era visto e vivido de forma nebulosa e imediatamente jogado para o fundo das memórias, como se fosse algo muito distante, ou somente imaginado, ou a confusão com alguma história lida ou ouvida.

Não parecia que tudo aquilo acontecia de verdade comigo. Devia ser a falta de referencial. Ou então eu já havia enlouquecido.

Faminto e sedento, via coisas que provavelmente não existiam, falava sozinho com seres imaginários e sentia dores por todo o corpo. Senti falta de tanta gente. Amor, saudade, apego, desespero, o que fosse doía muito, angustiava. Achei que ia morrer.

Devia estar doente de tanta coisa e não havia possibilidade de ajuda. Se não pela distância, pelo orgulho, pela estupidez, pela loucura, pelo preço altíssimo da redenção. Toda redenção deveria ser precedida por uma mortificação, um martírio, um sacrifício.

Qualquer limite da sanidade fora ultrapassado. Mastigava folhas que eu nem sabia se eram venenosas. Formigas me picavam, eram minhas penitências. Eu era um pecador e devia ser punido, até que o horror tomasse conta de tudo, me tomasse nos braços e me colocasse para dormir, me despertasse à alvorada.

Deus nos havia dado a dor. Era a maior das delícias de seu jardim. Era grandioso, encantador, magnífico. A dor era a maior prova da existência divina.


V

Não consegui perceber o exato momento em que me integrei à paisagem como organismo natural daquele ambiente.

Meu desprendimento foi, ao mesmo tempo, brusco e gradual. Qual animal acuado, fui seguido (pelo menos tinha essa impressão) na mata por pessoas que poderiam ser andarilhos, bandidos, policiais à minha procura. Escondi-me, não os reconheci quando avistei o grupo do alto de uma pedra cheia de musgo, dificultosa de ser escalada, ainda que de baixa estatura.

Aprendi a fazer minhas próprias ferramentas rudimentares. Cacei, pesquei, colhi de forma precária. Sempre doente e subnutrido, era dificultoso cumprir minhas atividades de sobrevivência no dia-a-dia. Por outro lado, já não me importava com os perigas da escuridão: desabafa no chão mesmo, de cansaço e fraqueza, à mercê do que viesse.

Fui animal, fui ancestral de mim mesmo. Corri como criança pelos campos, colhi flores e as mastiguei. Gritei, cantei, falei sozinho. Andei nu por horas a fio, fiquei barbudo e cabeludo.

Meu nome, minha identidade, meus documentos, até minha voz, tudo se tornou obsoleto, resquício do que eu já não era mais. Restavam-me as roupas rasgadas, cheias de furos, que fui substituindo por peles dos pequenos e médios animais que eu caçava, junto com folhagens de árvores. Era rústico e provavelmente ridículo, mas além das águas não havia espelho, e além da fauna não havia testemunhas.

Fiz questão de não contar os dias, mas, mesmo assim me custou um pouco esquecer a passagem do tempo, especialmente nos primeiros tempos de adaptação mais rude.

As palavras se perderam, restaram apenas os símbolos. Deixei marcas aleatórias nas paredes rochosas. Plantei sementes que recolhi antes da estação, e que provavelmente não floresceriam. Quebrei galhos, pisei em insetos, bebi seiva do tronco das árvores.

Parte de mim queria ser eternizada de alguma forma, parte de mim queria ser misturada à natureza, sem deixar vestígios.

As trilhas e as partes de mata cerrada, com suas árvores imponentes, pequenas cavernas lúgubres, animais de todos os tamanhos me pareciam cidades, enormes e complexas cidades, sufocantes como as que eu percorrera por tanto tempo da minha vida, com avenidas de asfalto e poluição, com prédios, carros e pedestres. Eu via tudo da mesma maneira hostil.

Talvez um dia retornasse. E seria destruído.


VI

Perdi meus dias, ou eles se perderam de mim? Passou-se tanto tempo que eu não sabia mais medi-lo, mas sentia que isso era indiferente. A vida não devia ser medida em tempo, mas sim em experiências em aprendizado.

E minha jornada havia sido como morrer, nascer de novo e acabar vivendo a mesma vida, porém em outro corpo. Ou fazer outras escolhas e perceber que estavam todas erradas, que não havia decisões certas.

Aquilo tudo que se sucedera, em ambas as vidas, era uma perda pessoal, minha asa negra, ou era o inevitável e impassível destino de todos, a vala comum que esperava, ansiosamente, toda a humanidade em seus domínios?

Minha fuga fora apenas um atalho para os grandiosos e inefáveis braços do destino. Por outras vias, trilhei o mesmo caminho. Não havia lugar para mim em lugar nenhum, nem na cidade, nem no campo. Meus anseios e sentimentos eram absolutamente anacrônicos; não havia lugar nem época para eles, fosse aonde fosse.

Nem a verdade, nem a verdade. Eu não era plenamente nem homem, nem animal. Sempre no meio do caminho, aquém de qualquer existência, perdido de minha própria identidade.

Por isso estava decidido, inconscientemente, inconseqüentemente, sem mesmo decidir alguma coisa. Em um belo amanhecer ensolarado de primavera, no limite da razão, me levantei da inércia de uma manhã comum e saí andando a esmo, uma vez mais. Não era medo, nem solidão, tampouco desespero, apenas a força incoercível do espírito que, alquebrado e levado ao limite de todas as coisas, ouvia o chamado final da própria desconstrução.

Desci, em lenta caminhada, numa pressa reprimida de quem desejava correr sem vergonha, mas fingia racionalidade para si mesmo, por uma vereda escura, onde nascia uma fonte de água pura. Água primordial, que nunca havia presenciado a luz do dia. Água das rochas, saliva dos deuses subterrâneos, adormecidos sob nossos passos incertos.

Atravessei o córrego, molhando descuidadamente os sapatos e as meias, e segui pela encosta de um barranco cheio de musgo até as margens de uma lagoa, que mais parecia um fosso, onde o riacho desaguava em círculos concêntricos que trepidavam à superfície.

No alto, uma clareira, de onde desciam raios solares, luminosos como o fogo do Espírito Santo, inebriantes como os anjos das mais altas hostes, sob o céu de um azul incrível, pura memória de onde nunca estive.

Ao redor, lama umedecida, pedaços de galhos e folhas; tudo rodeado pela onipresença das árvores sombrias que se entrelaçavam e dos pássaros de canto soturno. Era quase um santuário imerso na quietude cravada no coração inóspito do coração do matagal.

Com certeza já estiveram ali; caso procurasse, eu encontraria vestígios. Mas dificilmente haveria restos de alguém com a minha história, nas minhas condições. Era meu juízo particular, meu próprio julgamento, o encontro com o que havia de mais severo e impávido no Universo.

No entanto havia a calma pairando no ar, junto à umidade. A calma que entrava pelos cantos dos olhos e pelas narinas, a calma que eu via, sentia e respirava. A calmaria angustiada. Tamanha paz e resignação me doíam o peito.

De onde vinha aquela calma? Era a minha humanidade que insistia em dar as caras. Cercado pela humanidade, mesmo longe de tudo e de todos. Como fantasma, me assombrava, assustava, perturbava, tirando de mim a paz e o esquecimento que eu tanto buscava.

A lagoa era o próprio centro do universo. Sobre o tapete estendido de água límpida, deslizava o cinza de algumas nuvens e o dourado do sol. Meu rosto distorcido e fluido refletido no espelho se unia com o fundo lodoso, onde pululavam girinos e larvas sinuosas, enquanto mosquitos roçavam a superfície aquosa.

Parecia que todas as galáxias convergiam para aquele ponto, que a tudo atraia engolia como o abismo sem fundo de um buraco negro. Tudo era barranco e fosso. O infinito era o abismo. A matéria universal despencava junto à terra das encostas baldias.

Ali, contemplei a silenciosa plenitude de coisa alguma.

Olhei fundo dentro do abismo: em meio às trevas, vi a luz, e fiquei cego. Conheci a verdade, e ela me aprisionou, se agarrando a mim como algas pegajosas num recife.

Entrei na água gelada, que me arrepiou a pele e os pêlos. Senti raiva de tudo aquilo, de mim, da natureza, da situação, do meu passado. O mundo todo era uma farsa que eu levava comigo, a perpetuação da mentira.

Olhei ao meu redor, enquanto segurava os dentes para não baterem de frio e sentia a lama me afundar até os joelhos, fazendo minha pele roçar em galhos, pedras e folhas.

Um olhar de esperança para o nada e um aceno caloroso para ninguém. Procurei uma pessoa certa, um momento certo, um lugar certo. Os mapas indicavam ruas desertas de cidades que não existiam. Parecia andar sempre por cemitérios, buscando morrer quase em paz.

Enganara-me: não havia mais vestígio de sanidade. Um inferno atraiu outro inferno. Frio e ermo, triste e só, meu inferno particular. Silencioso e cordial, o inferno de toda a raça humana. O inferno era a uniformidade

Esforcei-me para afundar. O caminho mais estreito: o último beijo, o último suspiro, o último poema. Um suspiro borbulhante sob a água, pura raiva incontida. A lama subiu, descobrindo pequenos peixes, e turvando a superfície, impedindo parte da minha visão. Já não via o fundo, já não via meus pés, já não olhava ao redor. Minha visão buscava enxergar o impossível.

Na orla seca que não havia, a margem invisível de uma lagoa inexistente, o batismo que me manchou com todos os pecados que viessem depois de mim, em toda a humanidade.

Engoli água e lama, enquanto meus ouvidos cheios de água captavam ruídos surdos da superfície e meus olhos ardiam para que eu enxergasse formas distorcidas daquela dimensão à parte, sob as águas. Imerso, ninguém viu minhas lágrimas.