O PRÍNCIPE
Luís Augusto Marcelino
 
 

Ninguém entendia uma sílaba do que aquele homem preto falava. Supunha-se que fosse africano, mas nunca alguém conseguiu afirmar com exatidão sua nacionalidade. Era provável que fosse angolano, talvez nigeriano. Só sei que todas as manhãs quando eu ia para o escritório no Centro, via-o arrumar suas bugingangas em frente ao prédio da Caixa Econômica Federal. Primeiro ele dobrava um edredon alaranjado puído. Em seguida recolhia o travesseiro, que era na verdade um cobertor cinza que fazia as vezes de travesseiro. Juntava tudo à colchonete esquálida, fazia uma espécie de rocambole e amarrava tudo com uma fita. O ritual durava de três a quatro minutos.

Antes de ir em direção ao bar onde invariavelmente eu tomava uma xícara de café, tentava pentear os cabelos pretos, ensebados e terrivelmente fedidos. Usava um pente que faltava dois ou três dentes – não era possível precisar por causa da distância, mas suponho que faltavam mesmo três dentes. No pente. Na boca era bem mais. Quando enfim ele chegava na porta do bar (não tinha autorização para entrar), fazia um gesto com os dedos. Usava o polegar e o indicador, e o gesto queria dizer que ele estava pedindo um café. Raimundo, o balconista, lhe servia uma dose grande num copo descartável. Ele mesmo ia até a calçada e o entregava ao estrangeiro, que lhe agradecia com seu sorriso desdentado.

- Agora some, negão! – dizia o Raimundo, que também era preto.

Ele então saía vagarosamente pela calçada larga. Os passos eram curtos e cambaleantes. Eu quase sempre o acompanhava com o olhar. Já tinha perguntado várias vezes para as pessoas quem ele era e de onde viera.

- Sei não... um vagabundo qualquer. Só sei que não é brasileiro – era o que mais eu ouvia como resposta.

Eu seguia para o trabalho e não me lembrava mais dele durante o resto do dia. Só na manhã seguinte é que ele invadia novamente meus pensamentos.

No primeiro dia de sua ausência não notei sua falta. Pra falar a verdade, embora ele já fizesse parte do meu cotidiano, só me dei conta cerca de uma semana depois. Perguntei por ele ao Raimundo. “Sei não, chefia.”

Era bem provável que tivesse se mudado. Isso era comum não só entre os estrangeiros. Também acontecia com os demais pedintes da cidade, todos uns nômades, fugindo de um lugar fixo. Tomei meu café, como de costume. Acendi um cigarro de baixos teores. Minha noiva, Alice, sempre dizia que esses baixos teores me levariam pra cova. Eu respondia “foda-se!” Naquele dia resolvi sentar. Enquanto baforava me veio uma idéia estúpida na cabeça. Quem sabe aquele estrangeiro não fosse um príncipe em sua aldeia? É, não era uma idéia de todo tola, era uma hipótese não totalmente descartável. Houve tantos relatos na História de pessoas que, em sua terra natal eram isso ou eram aquilo. E por uma circunstância qualquer, uma guerra civil, uma paixão não correspondida, um acesso fulminante de loucura, resolveu imigrar e se fodeu. É, eu não podia jogar pelo lixo a hipótese de ele ser um príncipe. Não me conformei e fui falar de novo com o Raimundo.

- Nem uma pista do negão, Raimundo?

- Olha... ouvi dizer que teve um preto que foi atropelado lá pelas bandas do Anhangabaú, faz uns dias. Vai ver foi aquele fedorento...

- Como assim? E ninguém noticiou nada? Ninguém, nesses arredores, associou uma coisa à outra? O desaparecimento dele e um atropelamento anônimo e ninguém se deu conta?

- Sabe como é, chefia... Ele é preto. E não é brasileiro.

Paguei a conta. Estou com passagem comprada para Milão. Vou a trabalho, fazer um curso. Lá vou ser estrangeiro.