O ESTRANGEIRO
Patrícia da Fonseca
 
 

Ele chegou numa noite de tempestade. Entrou na pensão vestindo uma longa capa de chuva. A primeira coisa que vi nele foram os olhos. Eram tão azuis que pareciam brilhar. Acho que foi por isto que me apaixonei tão rápido.

Lógico que eu não fui a única. Ele também virou a cabeça das minhas duas outras irmãs. Não sabíamos de onde ele vinha. Deveria ser de algum país frio da Europa. Aqueles cabelos loiros, quase brancos, denunciavam sua descendência alemã ou coisa que o valha. E o sotaque? O jeito de falar dele nos deixava arrepiadas. Minhas irmãs e eu quase disputávamos à tapa a chance de arrumar o quarto dele. Mas minha mãe, como sempre, antes que a briga ficasse séria entre três adolescentes apaixonadas, tomava a vassoura das nossas mãos e, não contente em deixar o quarto dele um brinco, ainda lavava e passava as suas roupas também.

Não sabíamos bem o que o estrangeiro tinha vindo fazer na nossa cidade. Negócios, confidenciara ele um dia a minha mãe. Quais negócios ninguém sabia, mas quem se importava? O que mais queríamos era estar próximas a ele, nos roçar naquela pele alva, ser alvo de algum olhar furtivo. Mas ele era tão educado que um bom dia, boa tarde, boa noite era o máximo que conseguíamos arrancar do estrangeiro. Eu dormia frustrada toda as noites. No outro dia me acordava cheia de esperança, que iam se esvaindo à medida que ele me ignorava.

Um dia, sem querer, flagrei minha mãe e o estrangeiro muito próximos, muito unidos, na sala de jantar. Os outros hóspedes já haviam ido dormir. As mãos dos dois se encostavam. Desde que meu pai morrera há mais de dez anos, eu jamais havia visto tanta doçura nos olhos da minha mãe. Maldita! Ela havia conquistado o estrangeiro! Fiquei com tanta raiva, mágoa e ciúme que fui dormir com uma enxaqueca terrível e acordei pior ainda. Quando contei para as minhas irmãs, elas não acreditaram. Acharam que fosse delírio meu. Bem que eu queria, mas não era. Aos poucos minha mãe e o estrangeiro foram se mostrando mais próximos, para incredulidade de nós todas. Os outros hóspedes se mostravam discretos mas sabíamos que todos comentavam que a viúva agora estava de namorado novo.

Eu costumava me perguntar se ele um dia voltaria para a sua terra, que eu ainda não descobrira qual era. E ele levaria minha mãe com ele? E, nós, ficaríamos sem ela ou iríamos todas juntas para algum lugar gelado e distante da Europa? Nossa, quantas dúvidas. De qualquer forma, minha mãe parecia cada dia mais feliz. O estrangeiro, cujo nome era Rudolph (eu não conseguia chamá-lo por este nome pavoroso) já dividia a cama com ela. Minhas irmãs, assim como eu, custaram a absorver aquela novidade. E eu, ainda apaixonada, mal podia olhar para os dois juntos.

Um dia, então, o estrangeiro avisou que precisaria viajar. A negócios. Minha mãe ficou desolada, mas ele jurou que voltaria. No máximo, seria uma semana fora. Quando ele partiu, mamãe enxugou discretamente algumas lágrimas. Eu também. Algo me dizia que o estrangeiro não voltaria mais. Algumas horas mais tarde, minha mãe deu um grito. Alguém tinha levado o dinheiro que ela guardava para as despesas da casa. Haveria algum ladrão entre os nossos hóspedes? Mas não podia ser! Todos eram de nossa confiança. Pessoas que conviviam anos e anos conosco não fariam isto com a gente. Uma suspeita, muito tênue, contra o estrangeiro, foi levantada. Afinal, ele era o estranho por ali. E que viagem era aquela, arranjada de última hora? Que negócios ele fazia? De onde vinha? O nome era mesmo Rudolph?

Eram tantas as questões que mamãe ficou tonta e foi se deitar, abalada. Eu, penalizada, agora odiava aquele estrangeiro sem vergonha. Disse para mamãe procurar a polícia, mas ela se negou. Tudo poderia ser um equívoco, argumentou a coitada, na esperança que o seu amor voltasse. Porém, naquela noite, minha irmã mais velha saiu de casa sem que ninguém visse. Como eu passei a madrugada ao lado da minha mãe, só me dei pela ausência dela no café da manhã. Mamãe, quando soube que Juliana também havia sumido, ficou louca. E eu caí na real. Ela e o estrangeiro. Aquela vagabunda. Traíra a própria mãe por um cafajeste como aquele. Arrasada, minha mãe procurou a polícia. Dias depois, descobrimos que o estrangeiro era na verdade bem brasileiro. Os cabelos eram pintados, os olhos azuis eram lentes de contato e ele era conhecido por aplicar o mesmo golpe em mulheres como a minha mãe. Juliana voltou para casa, sozinha, um mês depois. Ferida na sua dignidade, minha mãe a enxotou de casa e não a aceitou nem quando ela revelou estar grávida do ordinário. Dele não se teve mais notícias, nem nós, nem Juliana e o filho e nem a polícia. E por via das dúvidas, agora só aceitamos pessoas sem sotaque na nossa pensão.
 
 
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