A PONTE DO RIO DAS MORTES
Luiza Aparecida Mendo
 
 

Estava ali, debruçado na ponte, tentando fixar-se na própria imagem que escorregava pela correnteza e, no entanto, não desaparecia. Era como a própria vida que desliza pelas horas e não termina. Naquele instante ele podia estar sobre a ponte e abaixo dela, sendo arrastado pelas águas e, ao mesmo tempo, sem sair do lugar, como Deus: Onipresente.

O pai havia escolhido o nome, para que o filho chegasse àquilo que ele próprio não pudera ser. Forte, determinado, com uma certa dose de crueldade, para vencer a batalha da existência. Não foi difícil convencer a mãe, jovem e apaixonada e lá foram os dois para o cartório de pessoas físicas, com aquele físico mirrado, de pré-maturo, nos braços. Estavam carrancudos. A família dela não dispensava o direito de perpetuar o nome, mesmo que no entremeio e aí, nem mesmo apaixonada, ela pode ceder. Bárbaro Manso Martins. Aquele manso estragava tudo e o pai meteu o registro no bolso, sem mesmo ler. Estava feito, com defeito!

O sol castigava a terra daquele Brasil central, ainda despovoado. Não se via uma viva alma pelas ruas e até os pássaros preferiam a quietude das árvores. Vez ou outra a ponte tremia, sob o peso de um caminhão de gado e parecia que a imagem trêmula da superfície da água era a real e a da ponte o reflexo. Bárbaro, então, agarrava-se firme na grade e experimentava a sensação dos pardais, que se apegam aos frágeis galhos, até tornarem-se tão galhos quanto aqueles para, juntos, vencerem o pé de vento.

A vida tinha sido cruel demais e ele não sabia responder, a si próprio, se o problema estava em sua timidez, ou se em sua estatura. Um metro e quarenta e três era pouco até para as moças delicadas e os amigos não perdoavam aquele deslize da natureza. No colégio fizeram um sorteio e o armário que lhe coube ficava na parte superior. Formavam fila para rir e no início ele bem que tentou tirar de letra a brincadeira, mas acabou desistindo na segunda semana e passou a carregar nas costas aquela enorme mochila, o que lhe valeu o apelido de formigão. Acabou por desistir do colégio também e resolveu sair pelo mundo. Queria estar cada dia em um lugar diferente e tornou-se caminhoneiro. Nunca mais viu pai ou mãe e nunca pode chamar alguém de amigo, pois seus relacionamentos não passavam de um ou dois dias, assim acontecia também com as mulheres, que pertenciam, todas, ao mundo do comércio carnal, onde o que vale é o que se tem na carteira.

Agora estava ali olhando para si mesmo na mansidão das águas, com o sol a fritar-lhe os miolos, já perturbados pelo longo período de solidão, onde as únicas palavras que proferia eram aquelas indispensáveis para contratar a carga e as necessárias para entregar a encomenda. O resto na estrada se consegue com simples sinais.

Lembrava-se de seu pai aos berros, exigindo atitudes de homem de um frágil menino e de uma mãe meiga demais para dar um basta aos impropérios paternais. - Bárbaro Manso! - rosnava o velho com um ódio guardado no coração que ultrapassava qualquer laço genético.

As mulheres? Ah as mulheres com suas frases feitas, com suas mentiras lascivas! Que ausência de amor sentia agora... O Bárbaro da ponte chorava e o Bárbaro do rio era a própria lágrima em movimento contínuo, o resto era sol e solidão!

Assim como os pardais se soltam dos galhos quando cessa o vento, Bárbaro soltou-se de um salto só e mergulhou na mansidão do rio. Sentiu-se misturar à memória dos corpos mutilados dos bárbaros Xavantes, lindos e fortes guerreiros que morreram, como heróis, em defesa de suas terras e de suas gentes e dos corpos do conquistadores bárbaros que buscavam a expansão e o domínio do centro do país a qualquer custo, fazendo as águas do manso rio vermelhas de morte.

Rio das Mortes, Rio Manso, Bárbaro "e" Manso, pareciam nascidos um para o outro. O homem abraçou o reflexo, o reflexo absorveu o homem e na profundeza das águas seguiram seus destinos, porque lá fora tudo era sol e solidão.