ARQUIVO (in)CONFIDENCIAL
Doca Ramos Mello
 
 
Desgastou-se o formato da atração e a tv – esta besta apocalíptica que se alimenta das fraquezas humanas – já está tratando de modificar o conteúdo dos programas do tipo arquivo confidencial por uma atração afinada com os tempos atuais, desta feita algo mais realista, impactante, capaz de chamar mais público e faturar melhor, uma vez que toda aquela ternura do projeto anterior terminou por ficar meloso demais, chato mesmo. Estamos vivendo uma era de violência, quase um bang-bang, o povo quer ver mazelas, maldades, vergonhas, mortes, sangue, enfim, realismo. E o veículo deseja grana, portanto o mercado tem de se ajustar à clientela.

Remodelado, eis um novo arquivo no ar, para gáudio dos telespectadores e enriquecimento da rede: com vocês, Michelly Scheilla, cantora de pagode e axé, modelo, manequim e atriz – e quem não é? – sucesso absoluto na praça, grande talento descoberto intempestivamente por um olheiro da tv, no justo momento em que surgiu um tanto descoberta durante incêndio na loja de departamentos onde trabalhava, como balconista na seção de lingerie. Foi filmada, fotografada, apareceu depois em programa feminino, deu entrevista em emissoras de rádio, acertou com uma revista cultural para posar mais à vontade e... Bum! Explodiu na mídia. Aí, montou a banda e deu p’ra cantar...

Como tudo isso aconteceu há uma eternidade (cinco meses), Michelly Scheilla já ganhou o apelido de Micshei – a mídia faz o ídolo, a mídia cospe o ídolo! – e está sentindo que a carreira caminha aceleradamente para o local onde dormitam rãs, pererecas e sapos, de modo que seu empresário pagou para que ela aparecesse no arquivo – uma forma de levantar o ibope da moça, que anda caidaço...

Nesta nova versão, os depoimentos são mais verdadeiros, a memória é implacável e as falas beiram a baixaria irrestrita e têm como principal objetivo achincalhar com o entrevistado. Digamos que se trata de uma nova estratégia de marketing, do avesso, muito ao gosto da modernidade. Vejamos, pois.

Mirna, amiga de infância: “O que eu tenho a dizer é que Micshei nunca valeu dez réis de mel coado, já na escola, a gente tudo pequenininha ainda, e ela roubando o lanche das colegas, as borrachas, as canetinhas coloridas, com a cara mais lavada do mundo. Só não roubou mais e mais porque nunca se deu bem no colégio, era muito burra, não lia nem escrevia direito, a mãe dela foi ficando desanimada de gastar dinheiro à toa, acabou que tirou a sujeita da escola e botou para trabalhar num bar... O que ela roubou ali também, Deus duvida... "

Juba, primeiro namorado: “Namorar, namorar mesmo, não namorei porque nem precisava, a Mi era figurinha fácil, se aquilo era namoro, então ela namorou toda a torcida do Corinthians, eu heim... Ela diz que a gente namorou porque tem de inventar histórias para contar aos bobos dos jornalistas, mas eu até prefiro não falar mais nada, vocês vão procurar saber por aí o que dizem dela aqui na cidade, eu sou um cavalheiro, certo?”

A mãe de Micshei: “Boa bisca, isso sim. Essa daí nunca serviu para nada em casa, não prestou para o estudo, dei graças a Deus quando arrumou aquele corno do Roni, que se iludiu e até casou com ela, arre que tem homem idiota neste mundo... Mas, perguntem a ele que ele pode contar tudo o que passou na mão dela, os chifres que levou, e sei lá o que mais, perguntem a ele. Ô Michelly, deixa de ser canalha e vem pagar o carnê da tv que você comprou dizendo que era presente p’ra mim, mas eu nunca vi, só vi a conta”.

Roni, primeiro marido: “Chega a câmera mais perto, mais perto, assim, bem pertinho. É isso aí, Michelly, o que é seu tá guardado, piranha, pode crer, tu ainda vai ajoelhar no meu pé e eu ainda te arranco o couro , me deixa pôr a mão em você, sua ***...”

Tina, ex-colega de trabalho: “Colega de trabalho, eu? De que trabalho vocês estão falando? A Mi é uma vagaba, jamais pegou no pesado, me engana que eu gosto... O que fazia bem era mostrar as coxas para os patrões, e olhe lá. Um dia, deu diferença no caixa do supermercado e eu sei, viu dona Michelly, eu sei que levei a sua culpa nas costas, enquanto você se enroscava no pescoço daquele velho, o dono do lugar, duas vezes mais ordinário que você ainda... Agora aparece na tv, cantora, modelo, manequim... Rá, rá, rá, pra cima de mim...?”

Lírio, filho de 16 anos: “Aí, manhê, tu vacilô, tá ligada? Não comparece, não visita, não paga escola, não sabe nem o dia do meu aniversário, falô? Onde é que tu anda, pô?”

Wilson, gerente de banco: “Essa mulher é muito esperta, chegou aqui se dizendo famosa, que recebia altos cachês, eu, burro, dei cheque especial, ela saiu por aí estourando o limite, agora deve, não paga e ainda finge que não me conhece”.

Souza, síndico do prédio onde a cantora mora: “Só posso dizer que estamos entrando na justiça com um processo e vamos tirar essa senhora daqui. Ela não paga o aluguel desde que entrou aqui, deve as taxas de condomínio todas e ainda traz gente esquisita que mete medo nos moradores. Sem falar nas festas que dá, orgias tão grandes que nós temos de chamar a polícia, os bombeiros, enfim, um transtorno”.

Vini, crítico e colunista social: “Chamar essa mulher de cantora, modelo, manequim é o mesmo que dizer que laranjeira dá abacate, na minha coluna nunca entrou nem vai entrar, não dou publicidade a esse artigo, faça-me o favor...”

Cleverson, pai da cantora: “Eu não tenho filha e estou muito ocupado, licença”.

M.C., apresentador do programa: “PQP, essa mulher é uma vaca, meu!”