O PÁSSARO MORTO
Fábio Vanzo
 
 

I

Você pode sentir o medo?

Você pode sentir a aflição?

A tristeza?

A agonia?

A angústia?

Você pode sentir a dor?

Talvez ninguém mais sinta.

Tudo parece normal, igual. Mas não está.

Aparentemente você está sozinho, mas ela está aqui, com você.

Com os fótons de luz em velocidades inimagináveis, com as ondas sonoras e magnéticas que se debatem nas paredes, com o eco sem fim da tristeza.

Sua pulsação acelera, a ponto de ressoar em sua cabeça. Como pancadas.

Como passos firmes.

Um tremor de terra.

Um bombardeio aéreo.

O tique-taque do relógio.

A torneira gotejando sobre os pratos sujos na pia da cozinha.

Mas só você parece escutar e sentir. Quase enxergar.

Desolação em sua mais pura forma, ressoando no silêncio.

E você pode senti-la caminhando lentamente pelo corredor.

Portas e janelas trancadas.

Corrói-te por dentro e de fora.

Invisível, invencível, mas quase tangível.

Você tenta engolir, mas a garganta está seca demais.

Apanha uma garrafa de conhaque e toma dois grandes goles.

O ar está quente, úmido, viciado.

Mas o frio vem de fora, o frio sai de dentro.

Venta bastante e cai uma fina e fria garoa lá fora.

Cães ladram angustiadamente na rua.

Algum bêbado cantarola desafinadamente.

O quarto parece cada vez menor, mais apertado.

Aflitivamente, algo insiste em subir e descer pela garganta, revirar no estômago, até se instalar no tórax.

Oprimindo.

Consumindo.

Aterrorizando.

Dá vontade de chorar, de gritar, de vomitar.

Vontade de desaparecer, desejo de que tudo, o mundo, acabe de uma vez.

(...)

Você pode sentir a morte?


II

O Sol se elevava por trás dos túmulos quando você passou em frente ao cemitério. Daqueles que serviam não só de repouso para os mortos, mas de ponto turístico para os vivos. Imponente, renomado, cheio de acrópoles e mausoléus particulares, de famílias memoráveis, arquitetados por artistas famosos e ornados de motivos pomposos. Havia meses que você sempre passava pelos portões, vislumbrando a arte tumular lá dentro, e apressava o passo, geralmente atrasado para o trabalho, mas levando consigo o desejo de um dia adentrar aquele infame museu céu aberto.

Naquela manhã, enfim, após uma noite de pesadelos com pássaros mortos caindo das árvores numa tarde de ventania, concedeu-se o direito de uma travessura: entraria no cemitério e chegaria mais tarde no escritório. Qualquer desculpa serviria, e normalmente era um funcionário dedicado e pontual, havia muitos anos naquela empresa. Como uma criança cabulando aula no Ensino Fundamental, sentiu um formigamento no estômago ao descer do ônibus e adentrar o cemitério em vez de descer a avenida rumo ao escritório. Que fascinação mórbida! Santos piedosos, anjos tristes, ornamentos clássicos. Flores das mais caras, mármore e granito importados, epígrafes pomposas. Árvores frondosas, pássaros cantando e funcionários displicentes carregando ferramentas pelas vielas secundárias. Após uns quarenta minutos de passeio, sob o sol de outono já consolidado no céu azulado, com poucas nuvens, fazendo a pele suada coçar por baixo do paletó surrado, você já olhava ao redor buscando um lugar para descansar os pés apertados dentro dos sapatos baratos e duros.

Até que, próximo a um banco com o assento coberto por folhas secas caídas dos ciprestes das alamedas fúnebres, em frente a um dos túmulos menos interessantes, sem nenhum atrativo, lá estava ela, com seus olhos fundos e vazios, estáticos nas órbitas levemente avermelhadas.


III

Devia ter no máximo trinta anos. Roupa social, elegante e sóbria, qual uma secretária ou executiva. Cabelos negros presos em um rabo-de-cavalo. Cigarro aceso entre os dedos. Uma pequena bolsa sapatos de salto alto e óculos escuros quase na ponta do nariz.

Não era bonita, nem feia, mas tinha certo charme. Ao vê-lo se aproximando, abaixou um pouco a cabeça, olhando por cima dos óculos, dos pés à cabeça.

Você não sabe por que foi até ela. Mas o diálogo está vivo em sua mente, como um filme visto e revisto a todo momento.

Ela lhe cumprimentou cordialmente.

_Oi.

Você respondeu da mesma forma.

_Oi.

Ela olhou para o outro lado, fingindo um ar vago.

_Respirando um pouco de morte logo cedo?

Surpreso com a acidez da pergunta, você não sabia o que responder.

_Err... vim só conhecer...

Ela aparentemente tentou cuidar da ferida que abriu.

_É um belo lugar.

Você aceitou os cuidados.

_É. É sim. Você vem sempre aqui?

Ela forçou uma curta risada, um tanto irônica.

_Pergunta engraçada.

Você se desapontou.

_Talvez.

Ela voltou a olhá-lo, agora direto nos olhos, e esboçou um sorriso.

_Sim, venho sempre. Gosto daqui.

Aproximou-se dela. Tinha um perfume levemente adocicado.

_Tem parentes aqui?

Os olhos pareciam mais velhos do que o resto dela.

_Não, nem em nenhum lugar.

Pareciam ter visto demais.

_Ah...

Ela não deixou a conversa se perder, mas continuou distante.

_Gosto do clima.

Você pensou compreendê-la.

_Tranqüilidade, né.

Mas errou.

_Não exatamente.

Você insistiu.

_Paz?

Ela assumiu um ar enfático, quase uma professora.

_Transitoriedade.

E você, de aluno interessado.

_Como assim?

Olhos semicerrados.

_Ver os mortos talvez me faça sentir mais viva.

Você nunca pensou que um dia iria filosofar com uma estranha num cemitério.

_Que estranho.

E ela não parecia o tipo de pessoa que freqüentava cemitérios.

_E você, gosta daqui?

Nem você, na verdade.

_Bem, eu gosto das esculturas, gosto do clima de paz...

Você associava cemitérios a jovens amargurados, vestindo roupas góticas, bebendo vinho barato e lendo poemas ultra-românticos nas noites sepulcrais.

_A paz egoísta dos mortos. Partem e deixam os vivos sofrendo.

Mas ela era uma mulher feita, bem vestida.

_É...

E era mais ácida do que triste, parecia muito segura de si.

_Tem idéia de quanta dor está encravada nessas pedras, quantas lágrimas regaram as árvores que nos rodeiam?

Já você, parecia bem mais novo e ingênuo do que ela.

_Nunca havia pensado dessa forma.

Ela lhe estende a mão. Parece macia. E não possui aliança.

_Não fique assim. Aceita um cigarro?

Você engoliu seco e recusou, gesticulando.

_Não, obrigado. Parei de fumar...

_OK.

Você tentou ser educado e se desculpar pela recusa.

_Na verdade estou tentando. Acho que a gente nunca consegue parar de vez com os vícios.

Ela lhe repreendeu, mas com a voz suave.

_Não considero o cigarro um vício.

Você estava envolvido por aquela mulher tão singular.

_Por que não?

Ela adquiriu feições graves.

_Porque me dá prazer.

Quanto mais ela falava, mais você ficava incrédulo quanto à existência dela.

_E daí?

Ela olhou para as árvores, de onde cantavam pássaros incomuns.

_Vício não pode dar prazer. Simplesmente aplaca a dor que a falta daquilo faz.

Você olhou para o corpo dela, de cima a baixo. Era razoavelmente atraente.

_Talvez você tenha razão.

Ela abriu os braços.

_Meu vício é este.

Você olhou para ela. Seios de tamanho médio.

_Qual?

Braços ainda estendidos, com veemência.

_Cemitérios.

Você respondeu olhando no relógio.

_Ah.

Você desabafou.

_Na verdade essa história de morte me assusta um pouco. Na verdade me assusta bastante. Talvez por isso me fascine um pouco.

Era estranho: você, tão reservado, se abrindo com uma estranha.

_Tem medo de morrer?

Uma estranha mulher estranha.

_Tenho, muito.

Ela jogou a corda em torno do seu pescoço.

_Por quê?

Você conseguiu sentir uma súbita brisa gelada soprando pelos corredores.

_A simples idéia de não existir me aterroriza.

Mas fazia calor, e o céu estava azul.

_Não devia se preocupar tanto com isso. Pelo menos não agora.

Corda apertada e repuxada.

_Por quê?

Ela respondeu um absurdo, porém com naturalidade.

_Você só vai morrer aos quarenta e três anos.

Você se espantou, mas procurou aparentar tranqüilidade.

_Por que está me dizendo isso?

Ela olhou para o chão.

_De tanto ficar com os mortos, devo ter aprendido a reconhecê-los.

Você perguntou, sem pensar no quão insólito era tudo isso.

_Mas como?

Ela parecia observar uma trilha de formigas que carregavam um gafanhoto ainda vivo, agonizante.

_O cheiro...

Você tentou ser sarcástico para disfarçar a apreensão.

_Eu tenho cheiro de morto?

Ela esmagou, com o sapato, uma porção de formigas.

_O olhar...

Você não se preocupava mais em ser polido.

_Você é que tem olhos fundos!

Seu corpo foi alçado forca acima, faltava-lhe o ar.

_Talvez uma breve aura negra sobre sua cabeça.

Você olhou para cima, pateticamente.

_Onde? Onde?

Ela se comprazia dos seus estertores finais.

_Talvez um anjo, ou um demônio, tenha me contado.

Você perdeu o controle da situação.

_Pare com isso.

Ela sorriu, de forma sarcástica.

_Talvez eu seja louca.

Você olhou nos olhos dela, que pareciam ter séculos, e tentou se impor.

_ Isso é uma brincadeira de mau gosto.

O gafanhoto foi levado para dentro de um formigueiro que saía de uma fenda no chão de concreto.

_Talvez eu seja um anjo ou um demônio.

Você colocou as mãos no braço dela.

_Já chega.

Seu coração começou a bater mais e mais forte.

_Talvez eu esteja mentindo.

A voz dela parecia cortar seus tímpanos com as palavras afiadas.

_Chega!

Perturbação em sua mente.

_Estou lhe assustando?

Você estava totalmente transtornado.

_Vou embora, preciso trabalhar.

Ela se afastou um pouco e sentou, de pernas cruzadas, sobre um dos túmulos.

_Bem, não estou brincando, se é isso que deseja saber. Mas posso fingir que sim, se lhe deixar mais tranqüilo.

Ela agia como se nada houvesse acontecido.

_Talvez nos encontremos por aqui... ou por aí.

Não se despediu.

_É, talvez, num dia desses.

Você tinha trinta e oito anos.

 

IV

Foi um dia estranho, aquele. Você chegou em silêncio no escritório, sem cumprimentar ninguém, e sentou-se em sua mesa. Trabalhou absorto, sem conversar direito, nem prestar atenção no que estava fazendo ou no que diziam à sua volta. Sequer saiu para almoçar (ou pelo menos não se lembra de ter saído).

Deixou o telefone fora do gancho. Talvez alguém tenha perguntado por que você chegou atrasado, parecia assustado e estava tão pálido, além de não atender os telefonemas. Mas não conseguiu perceber.

Os papéis sobre a mesa, os arquivos no computador, as pessoas na sala, o café na caneca, o relógio na parede, os armários, os ventiladores, as persianas e as lixeiras, nada daquilo parecia existir de verdade.

O tempo passou lentamente, parecia que os ponteiros moviam-se ao contrário. O café esfriou. As vozes dos colegas de trabalho eram ouvidas de forma densa, pastosa. Sentiu calor, a ventilação era insuficiente. Você desejou um cigarro. Um banho frio. Apenas dormir.

Foi ao banheiro e jogou um pouco de água fria no rosto. Tentou acordar, mas se convenceu de que realmente não estava dormindo. Sentou na privada e fechou os olhos, tentando relaxar.

As cenas daquela manhã perseguiam-no em todas as horas daquele dia. Quem era aquela mulher? De onde vinha, para onde ia? Por que fez uma brincadeira estúpida daquelas com um desconhecido? Não era exatamente supersticioso. Mas o modo como tudo havia acontecido... parecia uma armadilha do destino, uma conspiração sobrenatural. Descer justamente naquele cemitério, naquele dia, e encontrar aquela mulher, tão incomum, profetizando-lhe um futuro sombrio.

Dificilmente alguém acreditaria naquela história. Uma reqüentadora compulsiva de cemitérios. Não sabia nada sobre ela, sequer o nome. Nem pensou em perguntá-la, de tão envolvido que estava naquele encontro insólito.

O fato é que você estava impressionado. Tinha medo da morte. Sempre teve, desde pequeno. Nada excessivo, mas era algo que o incomodava. A morte dos outros, mesmo a de pessoas próximas, nem importava tanto. Era a própria possibilidade de inexistência o problema.

Era cristão, acreditava em Deus e na vida após a morte. Em tese, não era uma pessoa ruim a ponto de temer o Inferno. Não era fanático, mas freqüentava a igreja, fazia caridade, levava uma vida bastante regrada.

O cristianismo haveria de oferecê-lo um pouco de conforto. A perspectiva de uma existência eterna ao lado do Criador devia ser algo, se não animador, ao menos tranqüilizante. Mesmo assim, o desconhecido era sempre amedrontador. E a fé não trazia consolo ante o abismo.


V

Fim de expediente, foi logo embora. Ônibus cheio, estresse, calor. Procurou nem olhar para o lado em que ficava o cemitério. Mas, irresistivelmente, vislumbrou as cruzes mais altas que se erguiam sobre os muros altos da necrópole. Um leve desespero percorreu-lhe o corpo. Teve receio, por um instante, de encontrar a estranha mulher daquela manhã. Paisagens. Qualquer coisa para distraí-lo: pensou em árvores, pássaros, verdes campos. Veio-lhe um cemitério à mente.

Resmungou palavrões, chamando a atenção de quem estava por perto. Esportes, livros, mulheres. Mentalizou uma música qualquer. Cantarolou, falou sozinho, ficou inquieto. Devem tê-lo achado maluco ou entorpecido.

Chegando em casa, tentou esconder da família o ocorrido, mantendo comportamento discreto. Sentiu certo alívio em estar num lugar conhecido, com pessoas conhecidas. Transmitia segurança, alento.

Sua esposa perguntou porque você estava estranho. Você fingiu que não entendeu e se afastou. Ela disse que você estava suado, com uma cara assustada, e parecia pálido.

Ignorou-a, apenas murmurando que estava cansado e precisava de um bom banho. Nem quis jantar, foi direto do banheiro para o quarto, e dormiu logo. Nem viu os filhos, que devem ter pensado o que fizeram de errado para não receber a visita do pai no quarto ao lado.

Ela acharia que você havia chegado de um encontro com uma amante, ou de alguma negociata ilegal? Não importava, você só queria que aquele dia terminasse o mais rápido possível. “Um dia ruim”, pensou antes de adormecer confortavelmente no colchão de casal, velho e macio, já com o formato do seu corpo. “Nada mais que um dia ruim”. Você estava exagerando. Era evidente.

Sonhou que estava à beira de uma estrada inóspita em todos os sentidos, infinita em todas as direções. Talvez fosse noite, talvez fosse dia. Pessoas (ou espíritos), apareceram ao longe e começaram a caminhar sem rumo, às vezes juntos, às vezes separados. Em suas mãos havia um relógio antigo, que, de repente, caiu no chão de pedra e terra e se espatifou.

Acordou um tanto cansado, como se não tivesse repousado direito. Mas a preocupação foi diminuindo com o passar dos dias. Afinal, você era um pai de família, tinha muitos compromissos, não havia tempo para se preocupar com superstições, nem pessoas de mal intencionadas.

Procurou se ocupar com as coisas mundanas. E elas haviam de sobra. Trabalhou como nunca, deu mais atenção à família do que de costume, leu muito, saiu para beber com velhos amigos. E não tocou no assunto com ninguém. Sentia-se inseguro, tolo. Às vezes, com sono ou embriagado, quase contava aquela história inacreditável. Mas ririam de você, fariam piadas maliciosas, desconfiariam, e no final, você não sentiria alívio nenhum em se confessar.

Mas a vida seguiu seu curso, quisessem assim seus pensamentos ou não. Meses depois, era só mais um folclore pessoal, quase uma mentira secreta, um sonho perdido. Nunca morto, mas adormecido nas profundezas.

Até o dia em que você fez quarenta e três anos.


VI

O que é a imaginação senão a chave para o puro Inferno? Aquele dia começou como tantos outros, sem muita graça. Céu nublado, anunciando chuva. Temperatura alta, com mormaço, deixando a manhã úmida e abafada, desde bem cedo.

Sonhou que estava em uma estação ferroviária, muito antiga, secular, toda deteriorada e enferrujada. Um sol muito forte, muito quente, abrasivo, brilhava infinitamente, como se estivesse a poucos metros da Terra, ofuscando tudo ao seu redor, transformando tudo em vultos e manchas em meio a uma explosão de luz branca.

De repente uma locomotiva cheia de vagões de carga passava lentamente, quase parando, mas descarrilou à sua frente, espalhando ferragens por toda parte. O barulho de metais em atrito foi ensurdecedor, e você tentou proteger os ouvidos tampando-os com as mãos.

Acordou angustiado, com um aperto no coração. Vontade de chorar. Sentou-se na cama, esfregou os olhos e, sem se levantar, tentou alcançar o interruptor mais próximo. Não conseguiu, de modo que ficou apenas à luz matutina, ainda tímida, que atravessava as cortinas fechadas.

Olhou para o lado, sua esposa não estava, já havia se levantado. Você não gostava muito de festas de aniversário, mas sua esposa sempre insistia em fazer um bolo, apagar umas velas e dá-lo algum presente. E as crianças, claro, adoravam a bagunça e os doces.

Um ano mais velho. Depois dos trinta, não sentia mais o tempo passar direito. E você estava quase na metade da quarta década de vida. Os amigos da juventude, havia muito, tomaram outros rumos, e sua vida era estável o bastante para não haver muito de diferente o que comemorar.

Mas todos aqueles anos vividos lhe ensinaram que não valia muito a pena fica divagando e lamentando. Pôs-se de pé, respirou fundo, vestiu roupas novas e foi à sala receber os parabéns da família.

Durante a tarde e o início da noite houve a festa, os presentes, as comidas e bebidas, os amigos e a família, os e-mails e telefonemas. Você acabou entrando no clima e – por que não? – se divertindo. Um dia relaxante.

Até que os visitantes foram embora, a leve embriaguez cessou, os familiares foram dormir, exaustos, e você viu-se sozinho, assombrado pela recordação de uma fatídica profecia declamada entre cadáveres e ciprestes.


VII

Não dormiu naquela noite. Nem nas seguintes. Ao som da respiração pesada e profunda de sua esposa, virou e revirou na cama, foi ao banheiro e à cozinha, desceu a sala para assistir televisão. Nada adiantou. Não conseguia adormecer. A lembrança virou temor. O temor virou angústia. A angústia virou desespero. O desespero virou paranóia. Alimentar-se, atravessar uma rua, entrar em algum lugar ou sair dele, sentir um mal-estar, trabalhar, acordar, dormir. Em cada esquina, cada gole, cada brisa, cada pessoa, cada piscar de olhos, cada momento, cada batida do coração. Bactérias e vírus no ar, na água e em tudo e todos que você tocava. Atropelamentos, acidentes, balas perdidas, doenças desconhecidas e fatais. Catástrofes naturais, assassinato. Cada instante vivido era um passo na escuridão, na qual havia a certeza do terror absoluto. Uma rodada de roleta-russa, um gole num copo cheio de veneno, um tumor se espalhando até a metástase. Podia ser naquele dia, no dia seguinte, na semana seguinte, no mês seguinte. A qualquer momento do ano, em qualquer lugar do mundo. Os dias passavam lentos, longos, sem nenhum sentido. Pensou em contar a alguém, desabafar. Contou a dois amigos próximos e à sua esposa. Todos riram, tripudiaram, disseram que você estava levando tudo a sério demais. Ela sentiu uma ponta de ciúme. Eles perguntavam sobre os atributos físicos da estranha. Disseram que era uma brincadeira, que você estava sendo ingênuo demais, que tudo era questão de relaxar, de tirar férias, de trabalhar menos, de praticar um esporte, esquecer uma coisa tão desimportante. Nas semanas subseqüentes, quando seus filhos ou outros amigos riam por perto, você achava que a notícia se espalhara. Logo, todos na rua pareciam rir, rir de você. Parecia uma conspiração, todos tramando, zombando, vigiando. O mundo queria enlouquecê-lo. E estava conseguindo. Talvez quisessem matá-lo. Talvez fosse um plano daquela mulher. Talvez ela fosse um ser maligno, um alienígena, um demônio, um espírito. Mas parecia tão comum! Pensou em reencontrá-la. Durante duas semanas inteiras, desceu do ônibus e vasculhou o cemitério à procura dela. Nas vielas e alamedas, quadra a quadra, na capela, na administração, entre as árvores e os túmulos. Perguntou aos funcionários, ninguém parecia se lembrar dela, nem reparar. Era um cemitério muito movimentado, diziam. Seus amigos pareciam evitá-lo. Sua esposa reclamava da sua paranóia e de seus hábitos estranhos. As crianças pareciam assustadas. Você pediu férias do trabalho, o que deve ter sido um alívio para seus colegas. Em compensação, sua família pagava um preço alto com seu estado cada vez mais esquizofrênico: perambulava insone, noites adentro, ficava sentado no sofá, desconcentrado, dias afora. Televisão ligada, livro aberto, mas nenhum pensamento articulado. Estresse em níveis terríveis. Você achava que as pessoas próximas a você podiam ser mais compreensivas, mas acabou se conformando: todos tinham problemas e você realmente podia estar enlouquecendo. Foi sugerido até procurar um médico amigo, mas àquela altura você sentia vergonha e raiva, não desejava mais contar nada a ninguém. Seis meses depois e sua esposa saiu de casa e levou os filhos para a casa da mãe dela. Ainda havia meio ano até que você morresse ou comprovasse que a previsão era mentirosa. Mas não era fácil agüentá-lo o tempo todo, irritadiço, reclamando, ofendendo, tendo crises nervosas, chorando pelos cantos, recusando ajuda, dizendo-se incompreendido. Pensou em procurar um psicólogo ou um psiquiatra, mas não tinha dinheiro para um tratamento. Seguiu em seu martírio solitário, sua agonia, tendo sua existência arrancada dolorosamente, cada vez que você respirava. O Inferno é real, e você pode sentir sua presença.


VIII

Como um anjo caído, descende no céu a última estrela da madrugada, justamente a mais brilhante. Que não é uma estrela de verdade. Finda mais uma noite de tormento. Quantas mais virão até que sua hora enfim chegue?

Sua vida tem sido arrancada dolorosamente, pedaço por pedaço, há seis meses. Tudo que você possuía foi irrecuperavelmente perdido, varrido para o subterrâneo inalcançável por uma enxurrada, uma torrente de águas negras.
Seus maxilares doem, de tanto que os dentes rangeram, noites e noites insones adentro. Dedos inchados de tanto que as unhas peles foram roídas. Frágeis fios de cabelo desgrenhados, enfraquecidos pelo estresse e pela má alimentação, sobre a cabeça que lateja de enxaqueca. Olhos fundos e vermelhos, lábios trincados, pele pálida como mármore.

E a morte, enfim, lhe chega na manhã sombria, gélida e nevoenta. Batendo solenemente à porta, uma pancada apenas.
Você não agüenta mais a expectativa e corre até ela, oscilando entre o choro convulsivo e o riso nervoso. Grita desesperadamente, urrando de forma rasgada, fazendo as cordas vocais rasparem a seco na garganta sem saliva. Grita até ficar vermelho, até perder a voz, até faltar-lhe o ar.

Joga-se da cama até o criado-mudo, abrindo as gavetas e jogando as coisas no chão, enquanto um copo com água e um despertador espatifam-se no chão. Com as unhas roídas e cheias de lascas, tenta arrancar os cabelos, arranha as bochechas, debate-se violentamente contra a porta e uma das paredes.

Ela, a inefável, inexorável, molha seus lábios ressequidos com um beijo, negro e faiscante, da obliteração. Sabor de imortalidade. Um beijo com paixão.

Caído de joelho aos pés da Velha Senhora, você pode vislumbrar, ao olhar para cima, seus olhos infinitamente profundos e sua expressão gélida e perversa. Puro ódio.

Não há mais volta, e você, sabendo disso, nem resiste. Os corpos se entrelaçam gentilmente, no mesmo lugar, até desaparecerem no espiral que as asas criam na umidade viciada do cômodo, no clarão de um relâmpago e no estrondo seco de um trovão.
O inverno sem fim abraça seu coração com pesar. Frio. Você sente frio. E vê-se em uma paisagem arruinada. Escuridão. Nenhuma montanha, nenhuma árvore, nenhum lago. Apenas uma terra desolada de gelo e rochas cinzentas. Nenhuma paz, nenhuma luz, somente melancolia.

Enquanto isso, a fumaça malcheirosa paira à altura das janelas fechadas. O telefone toca incessantemente, sem resposta. Talvez um vizinho. E você estendido no chão, mergulhado em sangue espesso.

Seu pássaro, morto, permanece com as patas pra cima, inerte, enquanto minúsculas formigas descem do teto, pelo fio que sustenta a gaiola, e tentam devorá-lo.

Quando o sol de primavera desponta entre as nuvens, os pedaços de seu crânio jazem espalhados pelo assoalho do quarto há pouco mais de um quarto de hora. E seu cão faminto – afinal, você havia sido negligente com a alimentação dele nos últimos tempos –, atraído pelo cheiro de morte, lambe e mordisca o que resta de sua massa encefálica. Até que a empregada chegue para a faxina semanal e grite de susto quando encontrar seu corpo.