DOUTOR STRABO - UM CASO TÍPICO DE PERDA DE IDENTIDADE
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 
Um caso típico de perda de identidade. Estado de amnésia. em alto grau, diga-se de passagem. Nem do que comera no dia anterior conseguia se lembrar. Estranho. Então por que a palavra amnésia lhe vinha tão fácil? Andou pelas ruas adjacentes ao hotel onde acordara e elas lhe pareciam familiares. Bastava pousar o olhar numa praça, viela, bulevar, e sabia com certeza que já estivera ali pelo menos uma vez. só não sabia se fora pela manhã, há uma hora atrás ou em outra encarnação. Encarnação. Essa era outra palavra que também lhe vinha limpa e sem empecilhos. seria ele um adepto do espiritismo? um kardecista? Talvez. Mas também podia ser católico; já que ao passar em frente a catedral metropolitana o seu braço direito, automaticamente, sem que ele ordenasse, fez o sinal da cruz.

Em andança desmemoriada desceu a ladeira da Memória, cruzou o viaduto do Chá, avançou pelo largo Sete de Setembro - leu na placa - onde as mulheres do calçadão, educadíssimas, o cumprimentaram pelo nome. Suspeitou quais seriam as relações que teria com elas: seria um cliente preferencial, desses generosos que pagam bem pelo serviço completo e que elas disputam a tapa? ou seria um gigolô violento que lhes impunha temor e respeito? Sentiu por elas um misto de pena e desejo que logo, ao dobrar a esquina, submergiu no vazio de sua mente que já se ocupava em tentar em vão guardar as visões subsequentes.

Num instante seguinte, que coube a outros relatar, na praça Clóvis, os homens o detiveram.

"Passaporte, por favor", pediram-lhe com rara educação.

Passaporte? Seria um estrangeiro? enfiou a mão no bolso traseiro da calça, apanhou o documento de capa dura e, antes de entrega-lo ao polícia, abriu-o e deu uma rápida olhadela. Strabo. Esse era o seu nome. Nacionalidade belga. Lembrou-se - um lapso - de uma certa espécie de canário. Na fotografia, supôs, teria uns dez anos a menos - quis ter um espelho à mão para poder comparar com sua imagem atual - e olhos profundos de prestidigitador.

Charlatanismo. era disso que era acusado. Segundo depoimento de testemunhas andara apregoando na praça da Sé um produto que obrava milagres, prometendo cura para os enfermos de corpo e alma.

Doutor Strabo. O visto vencido e - embora formado em uma das mais tradicionais instituições educacionais dos Países Baixos - o exercício ilegal da medicina. Devia deixar o país imediatamente.

Onde estão os frascos? a prova? Foi conduzido ao distrito central.

Gente simples do povo foi arrolada como testemunha: o negro acometido de vitiligo braba, a bailarina com súbita obesidade mórbida, o goleiro com síndrome do pânico na hora do gol. Os prós e os contras.

Do elixir do doutor Strabo um último frasco. O verdadeiro e único.

Dois dias antes, para provar que a poção de fato funcionava, ele próprio fez-se cobaia e atirou-se de cabeça contra a coluna de cimento no meio da rosa dos ventos que marca o ponto central da cidade. E literalmente apagara.

Ao delegado plantonista pede licença para usar o lenço. Vasculha, no bolso do paletó o último frasco. Antes que possam impedi-lo, entorna o liquido púrpura garganta abaixo e, como acredita, a memória represada deslancha violenta esparramando fatos e cenas e imagens e perfis de toda uma vida.

"Tudo bem com o senhor?", pergunta o delegado.

Tudo estava bem e não estava. À noite enfiaram-no num avião da KLM e o deportaram para Bruxelas. No aeroporto, antes do embarque, o cônsul do seu país o acompanhou. Era um antigo amigo de infância.