INSTINTO CIBERNÉTICO
Flávio Martins
 
 

“Porque, cientificamente não existem sentimentos”

Aquilo não nascera, passara a existir Era fruto de tecnologia de ponta e fora criado por um grupo de estudantes e profissionais fissurados por ficção científica e robótica.A princípio, era apenas uma série de implantes corporais instalados no corpo de um gato em coma. Depois, circuitos eletrônicos foram gerados para serem integrados a sistemas inteligentes que formavam órgãos artificiais, funcionais. O gato sofrera cirurgias plásticas, e através da infusão de drogas e de mudança genética, a turma do GENEthicat pôde criar uma interface cerebral e por conseqüência, uma inteligência artificial que era que um complexo sistema neural fecundado por um chip de computador. Com os recursos da robótica deram movimento ao ser híbrido e com ajuda de computação gráfica simularam mundos virtuais que foram mecanicamente instalados no cérebro-processador do animal. A nanotecnologia ajudou na fusão das ligações eletrônicas com as terminações nervosas graças à células-tronco modificadas. Neurônios foram substituídos por microchips e glândulas por circuitos integrados. Após três anos de noites mal dormidas, experimentos diversos e muita dedicação, o embrião do projeto estava finalmente pronto. O gato já podia andar e emitir sons. Tudo ainda muito mecânico e artificial. Mas ainda havia um problema, a pele e a carne do animal apodreciam com muita facilidade. Decidiram então trocar a pele por tecido e a carne por estopa, mas ambos entravam em combustão após alguns minutos de testes. Cádmio testou e sugeriu o uso de kevlar para substituir a pele e de silicone pastoso em lugar da estopa. A partir daí, os movimentos do bicho tornaram-se mais objetivos e suaves, menos mecânicos. Aos poucos os cientistas iam aperfeiçoando o projeto de tal forma que em pouco tempo teriam um robô tão perfeito quanto um gato real.

Enquanto amantes da tecnologia, aqueles amigos buscavam nos estudos meios para aperfeiçoar o robô. Cádmio, Nickel, Mercon, Plânquio, Cúrio e Berílio se encontravam ás sextas-feiras e durante a semana se dedicavam aos experimentos. Encontraram-se pela primeira vez há três anos após contatos por e-mail através de um site que citava Asimov e Hawking. Influenciados pelas idéias cyberpunks, os amigos achavam mesmo que seria possível aproveitar o conhecimento tecnológico existente para criar um andróide bem próximo de um gato natural. Nos encontros decidiram criar o grupo de pesquisa chamado GENEthicat. Dividiram as áreas de pesquisa por área e assim cada um poderia se dedicar a uma parte do projeto sem se responsabilizar por tudo. A partir daí, Plânquio, estudante de medicina, ficou responsável pela estética e parte biológica; Nickel, letras, responsável pela parte neurolinguística e de seleção de conteúdo a ser implantado; Cádmio, químico e professor, responsável pela definição e análise dos materiais a serem usados; Mercon, engenheiro mecânico e professor de matemática, cuidava da anatomia e da cinética do robô e Cúrio e Berílio, que eram estudantes da computação, ajudavam com o conhecimento em eletrônica, lógica e processamento de dados. Cádmio era o mais velho. Formara-se há 15 anos e o projeto era seu grande sonho. Casara-se e tinha em sua única filha, Olga, a inspiração para trabalhar. Olga era pequenina, cinco anos se tanto. Seus cabelos vermelhos contrastavam com a pele alva e sardenta. Adorava brincar com Mícron, um gatinho preto, vira-latas que ganhara de um vizinho. Cádmio anotava todos os detalhes da relação afetiva que Olga, desenvolvia com o gatinho. Olga era muito calada, parecia guardar segredos infantis. Cádmio ficava várias horas observando o comportamento da menina.. Um dia, Olga brincando no laboratório da GENEthicat, achou o gato do projeto e o fez beber leite. Colocando um copo na boca do animal-robô, deixou leite derramar na boca do bicho e no corpo do animal. Como o robô estava desligado e não respondia aos estímulos e indagações da menina, ela o apertava contra o peito e chorava diante da imobilidade mórbida do bicho. Desistiu de brincar com o robô após alguns minutos. Dias mais tarde, ao entrar no laboratório, Cádmio e os amigos descobriram o módulo jogado a um canto totalmente molhado em leite e quebrado. Após alguns minutos constataram que quase todos os chips estavam avariados e os circuitos e articulações começavam a oxidar em função do contato com o líquido. Esse episódio fez com que o grupo pensasse na própria segurança e sigilo do projeto GENEthicat. Decidiram não trabalhar no projeto pelos próximos meses, período este que dedicaram à pesquisas e à experimentação de materiais. Mercon desenvolveu um sistema mecânico de segurança que impedia a entrada de pessoas estranhas no laboratório. Cúrio e Berílio configuraram a rede de computadores do grupo de modo a evitar invasões de hackers. Agora tinham uma Ethernet, ou seja, uma rede que não poderia ser acessada por pessoas de fora da própria rede. Isso aumentou o grau de sigilo e segurança do projeto. Decidiram também por não mais permitir a alunos e curiosos visitar o laboratório.

Após reestruturar a criação do robô e longos meses de pesquisa, finalmente chegaram a uma nova proposta para o projeto. Novos materiais foram incorporados e novas idéias haviam surgido. Reconstruiriam o gato, mas dessa vez ele teria inteligência autônoma e seria tão real quanto possível. Mercon havia recriado a estrutura óssea com cromo molibdênio, um metal ultra-resistente e muitas vezes mais leve que o aço. A pele seria mesmo kevlar, porém um pouco mais fino e o silicone pastoso foram substituídas por fibras de silicone estriado. Para o cérebro, Cúrio e Berílio haviam redesenhado o microprocessador e apenas esperavam de Nickel o tipo de conteúdo que seria implantado. Plânquio havia descoberto um meio de clonar o cérebro animal e com auxílio da eletrônica reproduzí-lo. Havia também uma nova unidade de processamento que cuidava essencialmente da parte cinética e que ocupava o lugar de coração. Na parte final de montagem do animal-robô, puseram garras de titânio, resistente à oxidação. Duas webcams substituíam os olhos e enviavam imagens para o cérebro-processador que as interpretava em até 256 cores e calculava tudo em 3D, assim o robô teria noção de espaço. Uma tinta impermeável fora usada para pintar a pele de kevlar em preto e o gato ficou parecido com uma pantera. Nickel apresentou o conteúdo a ser inserido na memória do animal. Havia informações sobre movimentos, hábitos felinos e um banco de dados com informações lingüísticas. Foi incluído um sistema áudio-sensorial, que permitia ao robô emitir sons e obedecer a comandos de voz. Havia também uma seção que agrupava todas as anotações que Cádmio havia feito baseado nas ações e reações do gatinho preto e de Olga. Ainda colocaram um microchip com um conjunto de algoritmos com as lembranças do gatinho real de Olga. O gato podia se lembrar de como ronrorar, arranhar o tapete e até mesmo de como caçar e matar um rato. Tudo foi inserido num micro-disco rígido acoplado ao cérebro-processador. Agora tinham um robô ágil, com inteligência autônoma e rápida, mas faltava a fonte de energia. No projeto anterior haviam usado pilhas recarregáveis, mas a capacidade de sustentar a carga elétrica era reduzida. Duas pequenas células fotoelétricas foram então instaladas na parte superior da cabeça, atrás das orelhas. Este equipamento absorvia energia solar e assim abastecia o bichano por até 3 dias. Este sistema contava também com um dispositivo de economia de energia que utilizava um capacitor e baterias que armazenava a carga excedente produzida nas células fotoelétricas. Todo o corpo do robô era revestido de material impermeável.

A primeira experiência foi com uma bola de borracha, que o híbrido abraçava, corria atrás e fazia rolar. Depois colocaram o gato-robô numa cama elástica. Um computador emitia ordens sonoras em várias línguas e o robô obedecia e respondia com movimentos e sons. O gato era capaz de identificar sons, imagens, pessoas e sua inteligência artificial lhe permitia calcular movimentos e ter vontade própria. Podia, por exemplo, andar em duas ou quatro patas, arrastar-se ou deitar, de acordo com a necessidade. Era também capaz de assimilar formas e tinha capacidade de análise do ambiente graças às simulações geradas no cérebro-processador. O GENEthicat estava quase aprovado, o projeto funcionava perfeitamente. Tudo estava pronto e o teste final deveria ser com pessoas, afinal o gato é um animal doméstico. Resolveram testar a docilidade do animal deixando-o com Olga por uma semana, já que Mícron, o gatinho dela, havia sumido. Queriam desenvolver as habilidades lúdicas e ativar uma possibilidade de tornar o bicho menos máquina e mais animal. Durante este período, Berílio e os outros pesquisadores observavam o animal durante muitas horas e lançavam as notas num computador que gerava gráficos e calculava resultados. Isso tudo formava um arquivo que o grupo consultava para melhorar a performance do robô. A cada dia o gato, chamado de Genésio, tinha suas habilidades apuradas e surpreendia as pessoas com suas capacidades e suas ações. Genésio possuía agilidade e rapidez incomuns e a memória do bicho era impressionante. Olga adorava brincar de jogos de memória com figuras coloridas com o gato, que sempre acertava onde estavam os pares. Já Cádmio o fazia descobrir uma bola de meia escondida dentro de um copo, que virado era embaralhado com outros quatro. O animal era capaz de reconhecer textos de autores clássicos pela simples leitura que Nickel fazia em voz alta. O gato confirmava o autor assentando-se no nome correspondente escrito no chão. Além disso o gato parecia ter gosto por autores específicos e, por exemplo, miava alto ao ouvir textos de Poe e Baudelaire.

De acordo com autores cyberpunks, movimento cultural que apresentou ao mundo a possibilidade dos andróides, os replicantes são robôs feitos à semelhança do homem, graças à evolução das descobertas na área da genética. Têm inteligência artificial independente e são mais fortes e resistentes que os próprios criadores, porém são frios e pragmáticos, incapazes de se deixar levar pelas emoções. O problema é que alguns replicantes atingiam tal grau de autonomia que se tornavam incontroláveis. Genésio era assim. Um gato que não era gato. Um robô que era mais que um robô porque tinha memória de gato. Um replicante. Por apenas alguns minutos Cádmio o deixou brincando com Olga enquanto comemorava o sucesso do projeto inovador com os amigos. A criatura híbrida era fria. Muito fria. A menina era inocente. Pegou o pescoço do animal-robô com as mãozinhas e tentou fazê-lo de boneca. Pôs um vestidinho no bichano e com uma tesoura tentava cortar o rabo do bicho. O bichano não gostou. Pulou na mesa de ferramentas e de lá se arremessou contra Olga com as unhas em riste. Eram unhas fortes, afiadas como navalha. Matou a filha de Cádmio sufocando a menina e cravando as garras no pescoço dela. Ficou brincando com os cabelos de Olga como se fosse um novelo de lã. A tecnologia havia criado tudo, mas Genésio, o gato que era perfeito, não tinha alma, mas exercia a memória.