MOSAICO
Ricardo Lahud
 
 

A caixa é muito antiga. Era de mamãe, presente de núpcias. Uma antiguidade adornada com um delicado mosaico de madrepérola. A caixa guarda fotos velhas de gente jovem. Enterrado, há um retrato de uma menina cercada por muitos: pai, mãe, avô, tio, padrinho, madrinha e cachorro pequinês. Sou eu. Era eu. Todos do entorno já estão mortos, a menina viveu muito. É uma velha.

A velha carrega um pano já muito usado, esgarçado, enodoado, puído. Uma velharia. O pano a velha usa todos os dias para tirar o pó do lindo tampo marchetado da caixa antiga. Os movimentos lânguidos tocam só a superfície, dentro, no escuro, não bole. Não quer se prender a lembranças nem libertar fantasmas. Segue intocado o sorriso encardido da velha quando menina.

As venezianas sempre fechadas e a sutileza do lume que atravessa o abajur provocam no gabinete do deputado uma penumbra que pretende paralisar o tempo. Sobre a ponderosa secretária, a foto de casamento e uma foto do filho da época em que o marido faleceu, ainda de calças curtas. É o último lugar onde a velha ainda pode apreciar o silêncio, no resto da casa há uma algazarra de sons ardidos desde que a invasora chegou com seu séqüito. Telefones, rádios, tevês, em todos os cômodos. Essa gente nunca fica quieta.

A morena tem mais idade do que a mãe e é menos especiosa. Nos dedos cheios de anéis não exibe qualquer aliança. Carrega uma criança pequena, pele cafuza, toda vestida de rosa. E malas. E móveis. E aparelhos. Traz consigo uma empregada, pintores, marceneiros, serralheiros, encanadores. E o caos.

“A senhora não pode mais morar sozinha, é muito perigoso”. A canalha usou meu sobrinho. Como recusar um pedido dele? Leva o nome do meu irmão. Já é um senhor, com os grandes olhos azuis característicos da família. Cuida das minhas contas. Visita a velha pelo menos uma vez por semana, traz remédios, deixa dinheiro. Meu filho também teve vastos olhos azuis. Minhas sobrinhas-netas, suas filhas de cabelos dourados e olhar de safira, herdarão as jóias da família. Se não podia dizer não ao sobrinho, nada disse. Ele considerou o longo silêncio como aprovação. Foi como a usurpadora chegou.

O deputado faleceu no Rio de Janeiro, então capital da República, infarto fulminante. Numa sessão no Senadinho, entreouviu a jovem viúva no velório. Repetiu a vida inteira com orgulho, o marido morreu no trabalho, estudava para senador. Maria Dulce, alegre de vinho branco, lhe disse uma vez “Não seja boba, o Senadinho era um famoso bordel carioca, muito freqüentado por políticos importantes”. Não ouviu o que a amiga disse. A velha ostenta, sem nunca tirar, ambas alianças de viúva respeitável.

Nunca vai à missa. Ou sai de casa para sentar no parque e tomar uma fresca. Cismou que, se sair, os estrangeiros deixarão a velha trancada fora da casa.

Toda noite, no limite entre a sonolência e o sono, a velha se prepara para uma viagem astral. Leu um artigo numa revista. O corpo de luz flutuando no ar, no céu, no espaço junto às estrelas. Nunca aconteceu, não acredita nestas bobagens. Voar é para os pássaros.

“Faz anos que não ouço de Maria Dulce, sonhei com ela outro dia. Para sumir deste jeito deve estar incapacitada”. Falava sozinha como um velho. Todas suas amigas estão velhas como a serpe. Ou mortas.

A antiga empregada esteve com a velha por muitos anos, mas nem por tanto tempo assim. Cozinhava, cuidava da casa e acompanhava a patroa às missas de domingo. A última vez que a velha a viu foi caída no chão da igreja. Um derrame, informou o sobrinho.
Duas vezes por ano, no Natal e no Dia das Mães, vem buscá-la para passar o dia com a família. As filhas dele adoram, a velha sempre leva uma jóia para cada. Ganhara muitas jóias da avó, da mãe e do deputado.

Mulher cor de canela, muito mais jovem do que o noivo, ousava usar um nada de maquiagem e ainda atrair todos os olhares. “Mas, querido filho, se ela é atriz, não é preciso casar só porque ela está grávida” – surpreendi-me com a minha própria sinceridade. Ainda mais na frente da moça, durante o jantar em que me anunciavam o matrimônio. Mas como você já sabe aí de cima, amado esposo, não fui forte o bastante para convencê-lo. Não era mais um menino a quem podia proibir. Nosso filho já estava calvo então, como ficou parecido com o senhor, querido marido. Às vezes, distraída ou sonolenta, quase o chamava pelo seu nome. Casou-se. Desgraçou-se. Desgraçou-me. Fui à cerimônia na Igreja São José. De vestido novo e enfeitada de jóias chorei muito no altar. Já na maternidade tive certeza, a filha não era dele. Uma mãe sabe. Uma avó sabe duas vezes.

Sonhava um sonho recorrente, aninhada no colo do deputado, deslizando num canal veneziano numa manhã nublada, o gondoleiro de camisa listrada azul e branco cantava Carinhoso (Ai se tu soubesses como sou tão carinhoso...) com sotaque italiano. Mas a velha não sabia se conhecera Veneza.

Na festa do primeiro aniversário meu filho a carregava no colo como um troféu, sorriso largo, olhos brilhantes. Não lhe incomodava a cor de argila, os olhos píceos, os lábios polposos, o cabelinho ruim.

A empregada, uma negra que faz parte do bando da saqueadora, passa os dias a me dar ordens, as quais ignoro. Chama-me de senhora, é certo, mas como um título de longevidade e não de autoridade. É outra a mandar na minha casa. “A senhora não devia ficar o dia todo em casa. Porque a senhora não vai dar um passeio na praça? É pertinho, dá até para ir sozinha. Eu a acompanharia, mas não estou dando conta do tanto de trabalho que esta casa dá”. Pois sim.

Pouco depois do segundo aniversário da menina, a nora abandonou o marido. Partiu para o exterior com um colega estrangeiro. A criança, deixou para que o palúrdio a criasse. Seis anos depois, o filho perdeu a batalha contra aquela doença cujo nome não se pronuncia em casa de boa família. Disseram que foi o cigarro. A mãe sabe que foi o desamor.

Antes da invasão bastavam quatros horas de sono para a velha. Desperta, circulava pelos cômodos frescos e soturnos tomando posse do que era seu. Agora, prefere dormir o mais que puder, à base de soporíferos.

A cópia do telegrama está numa gaveta da cômoda amarrada com uma fita vermelha a outras cartas, mas ela guarda a mensagem enviada à farsante na memória: “Prezada nora. Enviuvaste. Tua filha chega em Nova York no vôo noturno da Varig no próximo sábado. Meus pêsames”.

Nos dias após a missa de sétimo dia a casa se encheu. Amigas, conhecidas, contraparentas, alguns poucos viúvos com olhar de cachorro abandonado. Café bolacha suco bolo chá sopa licor. Um neto de alguém, com trejeitos efeminados e voz potente, lê um poema intitulado Saudades do filho mui amado. Os parentes mais próximos levaram semanas para perceber que a menina se fora. “Estará melhor com a mãe”.

A manicura e a cabeleira chegaram, como todas as quintas-feiras. A velha sentir-se-á bonita até o novo acordar.

A antiga empregada morreu no hospital e a mulher veio me dar a notícia cheia de meias palavras e sentimentalismo. Não era minha família ou minha amiga, era apenas minha empregada. “Se eu arrumar outra você vai embora?”. Ela sorriu amarelo e apertou a mão da velha como se fizesse um carinho.

“Vovó continua amuada e deprimida, sem ânimo para nada” – foi só o que consegui pescar da conversa. Ignoro quem poderia estar do outro lado da linha, mas ela que tente me mandar para um hospital, ou para um asilo. O deputado tem um revólver.

A porta do gabinete estava aberta, as janelas escancaradas. A luz dura da manhã de verão ressaltava todo o efeito nocivo do tempo sobre os móveis e livros do deputado. A velha se apressou para fechá-las, mas encontrou um obstáculo. Num pulo a pequena harpia pôs-se de pé, abandonando o arsenal de artista mirim com o qual brincava sobre o tapete persa do escritório, e se prendeu à perna da velha como um cachorro tarado. “Sai”, “Sai”, gritando em pensamento, apenas resmungou, sem nenhum efeito. Não ousava usar a bengala para tocar a criança e se livrar do abraço, o risco de queda era demasiado. Estancou, as dores flagelando pernas e costas, mas recusando-se à humilhação maior de gritar por ajuda. Foram momentos, horas, dias, séculos, de condenação até que o monstro teve a atenção desviada e partiu correndo casa adentro.

A caixa no chão, violada. O interior mexido e remexido. Amigos, parentes, paisagens e memórias mutilados pela tesoura de ponta redonda. Também ela fora decapitada. A cabeça sem corpo da menina sorrindo foi colada na janela de uma casa construída com lápis de cera. O pequinês brincava no jardim. A velha recostou-se no espaldar de couro macio da imponente poltrona, concentrou-se em ouvir a voz do gondoleiro e deixou-se morrer.