APRENDENDO COM OS ERROS
Vera Vilela
 
 

Naquele dia acordei com uma sensação estranha, não sei bem explicar como era, talvez a impressão que algo estava errado ou que eu esquecera de fazer alguma coisa. Como sempre, tomei meu banho, me arrumei, peguei meu velho carro e fui para o trabalho, um pouco mais cedo do que o normal porque era pagamento dos funcionários.

Eu trabalhava no posto bancário do Hospital de Clínicas e deveria passar na agência antes. Apesar de tantos cursos de segurança e avisos a gente acaba se submetendo aos perigos para não perder o emprego. O hospital tinha uma média de 800 funcionários e eu trabalhava sozinha no posto bancário para atendê-los.

Cheguei à agência como sempre, peguei os saldos dos funcionários (eram em papeletas nessa época), correspondências e vários papéis do meu dia-a-dia.

Aquela impressão de algo errado não desaparecia. Nos dias de pagamento sempre ia outro caixa para me auxiliar, mas quem levava todo o dinheiro – dentro de um malote do banco – era eu.

Não sei o porquê, mas pedi ao caixa que levasse metade do dinheiro, devidamente disfarçado num embrulho, peguei a outra metade e coloquei dentro de minha bolsa, e no malote que seria para o dinheiro coloquei apenas troquinhos (que hoje não dariam R$100,00) junto com as papeletas de saldo, minha agenda e uma sombrinha.

Chamei o vigilante que trabalhava comigo (ele já saía da agência fardado, mas desarmado - um erro), o caixa e chamei um táxi, como fazia todos os dias.

Eu entrava pela porta principal do hospital, subia toda uma escadaria, passava pelo hall de entrada e me dirigia até o posto de serviço.

Nesse trajeto do táxi até dentro do hall fui abordada por vários funcionários que, já me conhecendo e sabendo o meu objetivo naquele dia, iam me dizendo em voz alta

- E aí Vera, trouxe nosso dinheiro?

- É hoje hein Vera? Sua presença hoje é uma alegria!

Caso alguém não soubesse ser eu a portadora do dinheiro, nesse momento ficavam sabendo.

Passei pelas portas de vidro dei alguns passos, olhei em volta e percebi tudo muito quieto, um silêncio anormal para dia de pagamento. Nessa hora a fila já estaria enorme no posto que ficava atrás da parede do hall.

Antes que pudesse pensar qualquer coisa vi um homem correndo e cortando a minha frente, senti algo metálico passar pela minha barriga no mesmo instante que ele dizia:

- É um assalto, fique quieta e dê o malote.

Foram segundos que duraram, ele anunciando o assalto, aquela coisa que passou em minha barriga ( que eu acreditei na hora ser uma faca) e puxando o malote de minhas mãos me virando de lado. A única coisa que passou pela minha cabeça foi usar o impulso do giro que dei para soltar minha bolsa, que estava na outra mão, e ela voar para longe.

Ao soltar a bolsa, instintivamente eu segurei a alça do malote, criando resistência ao bandido.

Ele me empurrou ao chão, me apontou o revólver e então eu o vi e ouvi puxar o gatilho por duas vezes, apontando para o meu peito.

Nesse momento o vigilante do hospital que estava sentado, levantou-se, pegou o banquinho onde estava e veio de encontro ao bandido.

O assaltante saiu correndo e foi seguido por mais dois que estavam ali no hall disfarçados, com os braços enfaixados e com armas nas mãos.

Minha reação primeira foi passar a mão na barriga, acreditava eu que havia sido cortada com faca e levado dois tiros, e não achei nada. Não havia sangue, nem dor.

Levantei-me, peguei a bolsa já perto da escada, e voltei ao vidro para ver o que acontecia. Lá fora, o assaltante, com a arma em punho, levantou o braço e disparou duas vezes, agora com o barulho de tiro.

Por segurança resolvi me refugiar dentro do posto de serviço, quando cheguei vi a fila com umas cinqüenta pessoas mais ou menos, todas deitadas no chão. Na hora só achei engraçado, eram como peças de dominó derrubadas.

O vigilante do banco e o outro caixa estavam escondidos atrás de uma parede ( correram quando viram o que acontecia comigo), chamei-os e entrei. Disparei o alarme e tentava ligar para a agência, só que eu ria muito, não conseguia parar, acho que foi uma reação nervosa que tive.

O vigilante desconjurava o dia que tinha resolvido ser segurança, o caixa esbravejava e dizia que não ganhava o suficiente para isso, e eu apenas ria.

Finalmente consegui falar com a agência e o gerente me mandou esperar sua chegada, para só então ir até a delegacia fazer a queixa.

Fomos até a delegacia num camburão da polícia e o tempo todo eles riam de mim, me chamavam de otária. Onde já se viu andar com o dinheiro do banco? Servir de carro-forte?

Na delegacia a ironia continuou, mas a única coisa que eu pensava era ir embora, não agüentava mais a situação.

Na agência eu deveria esperar ainda o auditor do banco porque em ocasiões de assalto havia a suspeita de o próprio funcionário ser um dos culpados. Ainda essa!

Como o valor “preservado” era quase total, eles haviam levado apenas um malote com papeletas de saldo, uma agenda e uma sombrinha, a conversa com o auditor foi rápida e fui liberada para retornar à minha casa.

Nunca cheguei a minha casa tão feliz assim. Me disseram que a arma falhou duas vezes quando o bandido tentou me acertar, por isso ainda estava viva. Abracei bem forte aos meus filhos e agradeci a Deus.

Eu continuei trabalhando no posto ainda um bom tempo, mas a partir do próximo mês, eu passei a utilizar a entrada de serviço do hospital, o posto foi mudado para uma sala mais interna e quem levava o dinheiro era um carro-forte.

De tudo só fiquei com prejuízos: sem minha agenda, sem minha sombrinha e com um trauma absurdo que me persegue até hoje, todas as vezes que alguém passa correndo perto de mim o coração dispara.

Aprendi que nada vale mais que a nossa vida, nunca mais aceitei pressões para executar serviços em que eu corresse algum risco e também passei a dar mais valor às minhas intuições.
 
 
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