PAIXÃO DE MUDAR
Adelaide Amorim
 
 

É preciso saber perdoar porque nada do que se diz é definitivo. Eu queria uma casa de tijolinhos vermelhos (quem sabe brancos), muita madeira, vidro e verdes. Você sonhava com finas porcelanas e vitrais luminosos por trás de imensos gramados. O céu da rua antiga absorvia todos os desvios e tudo era uma névoa prateada e muito enganadora, mas pelos ires-e-vires nossa vida luzia mais que teus vitrais.

O trem cor de sujo, tão cansado em seus trilhos imutáveis, me dá a entender que meus desejos verdes eram sintomas de uma paixão pelo que pode mudar. O mundo em geral nada tem a ver com nossos sonhos mais queridos. E você, eu acreditava, eu confiava acima de tudo, nunca passaria a integrar o mundo em geral, com seus trens imundos e passarelas enferrujadas.

Perplexa tento assimilar essa estranha percepção de você externo a mim. Porque você continua em carne e osso, e o que ficou em mim foi marca, lembrança de sensações. Nem mais uma secreção, nem uma célula morta ou fio de cabelo. Nem um calor. Bem que às vezes eu achava sua voz um contorno vazio, mas quando se ama é fácil desentocar os pressentimentos das dobras mais fundas do coração. Coloria teus contornos com cores quentes, satisfeita dessa tarefa como se estivesse muito segura do futuro.

Quando chove, emigro de onde estou - nunca muito perto. Flano por um mundo espúrio. Vejo, sinto, penso, sempre regravando a fita de minha memória, e fico programada de tal forma que às vezes me surpreendo com tão completo arquivo. Comporto-me como uma filha pródiga de mim mesma, e não me espanta estar sozinha. O que me espanta é não te encontrar. Por tanto tempo fui sozinha a teu lado. Construí demais sobre uma realidade rasa.

Fiquei com a cidade, que de resto sempre foi minha, e a empresto a você. Em cada praça você me oferece uma flor de algodoeiro-da-praia, em cada rua deserta nos olhamos e todos os cenários estão eternamente prontos para de repente. Vivo paralela à esperança do eventual, dos olhares que podem se encontrar. Bem-aventurados os espúrios, que podem criar sobre uma infinitude que aos outros parece ser o nada. Aceito sem medo a bebida que a infinitude me oferece, e há quem veja nisso um risco e uma imprudência. Mas ser prudente é estar sempre pensando na morte.

O que mais amei em nós foi que preenchemos o silêncio um do outro. Fomos dois sozinhos numa noite estrelada. Presença que às vezes era como uma ausência, e por isso me extasiou desse silêncio pleno. A lembrança mais funda dispensa palavras porque não se explica. O passo amado pode ser leve e sutil, mas sempre será percebido porque é o que se deseja ouvir.

Você sonhava suntuosidades. Para mim, a estante da sala bastava. As sementes do fícus caídas na calçada para estalar sob os pés, a infância preservada nas manhãs. Pensei que tinha descoberto o sentido mais singelo de tua ambição com o mesmo ânimo com que um dia descobri um pedaço de sol dentro de teus olhos e a textura irrecusável de tua pele.

O que me faz sentir a solidão é que não posso achar utilidade para minhas descobertas que nunca existiram, para o silêncio que me impregnou toda. Transgredi o limite onde é preciso deter-se, a partir do qual o mundo passa a te olhar com desconfiança e logo com desprezo. Depois desse limite fica o desterro. Do lado de lá falta o ar de alguma aprovação e a audácia é uma flor murcha.

No entanto ainda quero meu caramanchão de jasmim-estrela. Quero nosso amor de volta, com direito a parar no tempo. Quero a porta sem chave e a expectativa das ruas do presente. Mesmo o trem sujo de lama pode passar. Pode chover na memória, porque ainda me parece possível o estado inexplicavelmente venturoso de ser tua para nunca mais.

Quero um vôo e um pacto de vida combinando: nós não vamos morrer. Ninguém promete nada nem se obriga. Porque uma vela que se apagou pode se reacender, por mais negro que esteja seu pavio, por mais derretida a cera. Que os trens prossigam nos trilhos normalmente no rumo de seus destinos. O homem foi feito para despertar amor e a história nunca se repete igual, assim como as árvores que florescem a cada primavera. Iguais são as convenções, a cegueira de respeitar o que não muda, a mentira de prescrever caminhos para o amor.