CORPO DA MINHA ALMA, ALMA DO MEU CORPO
Ivone Carvalho
 
 

Durante meio século fui uma pessoa reservada, que falava da minha vida sem pestanejar, até a usando como exemplo ao citar passagens que poderiam servir como incentivo, como instrumento para levantar o astral das pessoas, para lhes demonstrar que só o pensamento positivo, a perseverança, a humildade, a luta, a honestidade, a honradez, o brio, a alegria, a fé, o dinamismo, a determinação, a lealdade, a força e a energia são as armas que nos fazem atingir os nossos objetivos, realizar os nossos sonhos, vencer quando buscamos o que merecemos.

Dizem que a minha vida é um livro aberto, que eu falo até demais, muitas vezes dizendo além do que deveria ser dito, me expondo ao extremo. Há uma certa verdade nisso, porque o meu excesso de sinceridade e franqueza faz, muitas vezes, com que eu não omita detalhes que considero importantes para elucidar alguma situação.

Na verdade, eu não concordo com o termo “excesso” quando me refiro a sinceridade e franqueza, porque acho que elas existem ou não. Ninguém é um pouco sincero ou um pouco franco. Ou se é, ou não se é.

Mas, talvez essa seja a forma de dizer que dou mais sinceridade e franqueza do que recebo. Não preciso mencionar que sinceridade e franqueza ou se tem ou não se tem. E se dou o que tenho, me resta sim a esperança de encontrar reciprocidade nas pessoas com quem me relaciono.

Aliás, as minhas maiores decepções na vida ocorreram quando descobri que algumas coisas são estrada de mão única. E eu sempre, sempre, sempre, acredito que estou recebendo tanto quando estou dando, confiando plenamente em quem priva da minha intimidade e, de repente, me descubro sozinha, tomando ciência de que a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a confiança que dou não são trocadas no seu todo, como demonstrado, e é aí que a dor me abate, porque descubro que me dou em cem por cento acreditando ser correspondida, mas o egoísmo, a vaidade, o orgulho e, quem sabe, o próprio caráter das pessoas, fazem com que eu receba muito pouco ante tanto que dou.

Não vou mudar, eu acredito. Porque sou assim! Aprendi com a vida que quase tudo só é conquistado e conservado quando há doação integral. Doação de amor, de amizade, de lealdade, de companheirismo, de humanismo.

E como sei que dificilmente eu mudarei, também sei que mais cedo ou mais tarde vou continuar ganhando chumbo quando ofertar somente o perfume das rosas.

Minha vida sempre foi um livro aberto, mas a minha alma, o meu coração, os meus sentimentos, nunca puderam ser assim. Durante meio século de vida não foram assim.

Aí, um dia eu conheci uma pessoa que foi além de tudo que eu imaginava encontrar em alguém, porque me mostrou que para ela, além da minha vida, eu podia abrir a minha alma, o meu coração, os meus sentimentos, tudo que tenho de mais íntimo, de mais meu.
E me entreguei. E fui vencida. E me abri completamente! E senti reciprocidade em tudo!

Passei a ter, então, alguém, não mais para expor a minha vida, contar meus problemas, dividir as minhas e as suas preocupações, partilhando em mão dupla, me doando integralmente e sentindo uma troca de cem por cento em tudo.

Eu não cria que estava sonhando, que fosse passageiro, que a estrada teria fim. Sempre imaginei que se encontramos alguém que não nos completa, porque somos um inteiro, mas que nos faz nos sentirmos únicos e completos, entregando-se e abrindo-se para nós na mesma proporção com que nos entregamos e nos abrimos, ou seja, cem por cento, esse alguém jamais nos abandonaria, nos deixaria falando sozinhos ou permitiria que a chave do nosso coração voltasse a ser usada, trancando-o, fazendo-o engolir a seco o que só a esse alguém declararíamos e partilharíamos.

De repente, coração trancado, sem poder falar com mais ninguém, porque acredito que uma pessoa assim aparece uma vez só na vida da gente, porque ela é única, tão única como a gente, tudo fica muito vazio.

O amor é eterno, não fenece, não reduz, mesmo quando se ama o transitório, seja um personagem criado pela outra pessoa, seja um sentimento parecido com o amor mas que, por ser transitório, não é amor.

E quando a saudade bate com mais força, ela machuca muito mais, porque é a saudade não de alguém que se foi, não de uma situação ocorrida, não de alguém que fez parte da nossa vida, mas, sim, de alguém que foi o complemento que nos faltava para nos sentirmos inteiros, mais vivos, felizes em todos os momentos porque a realidade demonstrou que com essa pessoa, a felicidade existe em tempo integral, já que nada é melhor na vida do que sabermos que existe alguém que nos faz nos sentirmos tão importantes quanto o é para nós, mas, mais que isso, é alguém que pode nos ouvir e nos falar sem senões, sem vergonha, sem medo, sem culpa.

É alguém que lá no nosso íntimo esperamos, como eu esperei por cinqüenta longos anos, a vida inteira se for preciso, mas que existe sim e que depois que constatamos a sua existência, passa a ser tão importante para nós quanto o ar que respiramos.

Não importa se nunca vimos essa pessoa, se nunca tocamos a sua pele, se nunca beijamos os seus lábios ou o seu rosto, se nunca a abraçamos, se nunca olhamos nos seus olhos. Porque isso tudo só é importante quando precisamos de uma companhia material muito mais do que precisamos do companheiro espiritual, da alma que nos ouve e nos entende, do coração que vibra na mesma intensidade do nosso, da sabedoria que se encontra no mesmo patamar da nossa, da energia que move a nossa vida com mais vigor, mais sensibilidade, mais espiritualidade, mais ternura, mais amor.

Hoje eu me sinto terrivelmente só! Hoje só não, mas desde que deixei de ouvir e ter por perto aquela pessoa que esperei a vida toda para abrir, não mais só a minha vida, mas a minha alma e todo o meu ser. E hoje a saudade é gritante, a vontade de falar e ouvir é intensa, a necessidade do abraço é incomensurável.

Amanhã será ainda maior, porque a cada dia que passa, mais se distancia o tempo em que me senti única, completa, feliz...

Quanta falta eu sinto de ti, o corpo da minha alma, a alma do meu corpo!