TRÊS CENÁRIOS DA HISTÓRIA LUSITANA
Raymundo Silveira
 
 

Não consigo estar em Portugal sem a sensação de passear pela História. Ressalvando que é uma "História" particular - somente minha - onde, um misto de realidade e devaneio se difunde, como na mente narcotizada de um opiômano em pleno transe. Acabo de "viajar" durante alguns milésimos de segundos, à velocidade da luz e estou agora - graças à relatividade einsteiniana - no final do século XV. Encontro-me no preciso lugar onde mais tarde erigiu-se a Torre de Belém. O cenário é, ao mesmo tempo, familiar e estranho. O Tejo está literalmente saturado de caravelas. Palavras de ordem, gritos, choros convulsos, pragas, murmúrios, assobios não cessam um só instante. O agoureiro "Velho do Restelo" não pára de proferir os seus sombrios vaticínios. Mães desmaiam, noivas choram, irmãs soluçam. Todavia, a fileira indiana de marujos não interrompe seu obstinado embarque para mais uma das terríveis viagens cujo retorno é uma incógnita. Um soturno feiticeiro acrescenta à aflição daquelas famílias, uma premonição assustadora: "Quem passar do 'CABO NÃO', voltará, ou não!"

Palácio de Queluz, 1798. Em França o "Terror" está finalmente arrefecendo. Faltam apenas dois anos para o término do século tenebroso. Não tarda, portanto, a principiar o seguinte, que traria radicais transformações na estrutura política de Portugal e faria do Brasil o que ele é hoje: uma nação continental unificada em quase todos os aspectos: administrativo, lingüístico e cultural. É quase uma ironia da História que devamos isto a um homem nem um pouco remotamente ligado a nós - Napoleão Bonaparte. Parece incrível, mas é a pura verdade; devemos em boa parte o que somos hoje, ao "homem da Córsega." Retornemos ao Palácio de Queluz. Os gemidos ululantes de uma parturiente em pleno período expulsivo são audíveis a centenas de metros de distância. Chama-se Carlota Joaquina de Bourbon. É de origem espanhola e mulher do príncipe que mais tarde seria o primeiro e único monarca do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. A mulher adota a posição de parir recomendada pela escola obstétrica francesa, ou seja, o decúbito dorsal, o que lhe tornava a parturição muito mais laboriosa. Afinal, após horas de nervosa expectativa por parte dos circunstantes além das dores intensas e angústia da mulher, ouvem-se os vagidos de um recém-nascido. Acaba de chegar a este vale de lágrimas, Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Este, após uma curta, porém agitada existência - onde não lhe faltaram prestígio e ostracismo, mulheres deliciosas e problemas conjugais, triunfos monumentais e acachapantes derrotas, poder e humilhações -, veio a falecer em 1834. No mesmíssimo lugar, palácio, aposento e leito onde nascera há apenas 36 anos.

Baixa Lisboeta, 29 de Novembro de 1935. A uma das mesas do café "Martinho da Arcada" senta-se um homem solitário e sombrio. Já vai no sexto copo de conhaque. Seu semblante é quase sereno e não denota o turbilhão de angústias que o avassala. É magro, de estatura mediana, usa chapéu e óculos de aro metálico. A tez algo esmaecida dá, a quem tem um pouco de olho clínico, uma idéia da icterícia e de outros sinais da insuficiência hepática que há anos já o vem aniquilando. É uma figura quase ignorada do grande público. Não havia ainda se passado um ano sequer da publicação de seu único livro, "Mensagem" (Dezembro, 1934). Por esta obra recebera o prêmio de "segunda categoria" do Secretariado de Propaganda Nacional. Voltemos ao "Martinho da Arcada" naquele Novembro de 1935. O homem bebe sem parar. Subitamente torna-se mais lívido ainda. Gotas de gélido suor porejam de sua face angustiada. A dor que o atinge à altura do andar superior do abdome é lancinante. Ânsias de náuseas e vômitos se superpõem. Ele então é conduzido às pressas ao Hospital de São Luís. No dia seguinte - pelo menos fisicamente - deixa de existir. A partir daquele instante nasce um dos maiores fenômenos da literatura universal - o genial poeta Fernando Pessoa. Dizem que a causa da morte foi uma "cólica hepática". Todavia, qualquer estudante de medicina não hesitaria em diagnosticar pancreatite aguda hemorrágica.

"MEDICUS QUANDOQUE SANAT, SAEPE LENIT ET SEMPER SOLATIUM EST"