O AMOR, QUANDO ACONTECE
Luís Valise
 
 

Há que escolher-se bem a mulher. Saber de onde vem, as raízes da família, os usos e costumes, o recato, a educação, o sentido de ordem das coisas, as prendas nas lides da casa. Há que conquistar sua intimidade aos poucos, cuidando de não assusta-la com demonstrações de paixão demasiado escaldantes; e mesmo depois de casados, não há que fazer-se de tudo no leito: para essas coisas servem as que cobram, e se abrem, e se dobram. Em casa, o respeito, a moderação, o rito. Ou não me chamo Agenor.

Se chamava Agenor, marido exemplar, pai amantíssimo, funcionário de carreira. De casa ao trabalho, e de volta. De quando em quando uma cerveja no bar. Parava de beber ao sentir que começava a sorrir com facilidade. O sorriso desperta o que está escondido, e assim deve ficar.

Letícia entrou na empresa quando a primavera ia ao meio, o calor se anunciava por dentro do colarinho apertado. A primeira vez que Agenor viu Letícia, ela usava uma blusa que caía em diagonal, deixando um ombro descoberto. A pele, a penugem na nuca. Agenor abriu o botão da camisa, o sangue correu forte da cabeça ao coração, ou ao contrário. “A primeira impressão não tem valor”, enganou-se. Afinal desconhecia as origens, a cepa, o berço.

Duas semanas depois Agenor ainda duvidava dos solavancos no coração, ao vê-la. “Pressão alta, por certo”, iludiu-se. Os exames nada indicaram. As palpitações, os suores, a boca seca, o tremor nas mãos, o médico recomendou férias. “O que o senhor precisa é de algumas semanas fora do escritório, seu Agenor.”

Na praia, sentado sob o guarda-sol, paisagem magnífica, um grande vazio crescia em seu peito. Não se queixou. Apenas esperou a hora de voltar, e demorou uma eternidade. O comentário de Letícia foi inocente: “Puxa!, como o senhor está bronzeado, seu Agenor”. O bastante para que ele engasgasse com o café; o coração ocupava todo o peito, a ponto de explodir. Calou. O ombro, as curvas e o resto, a voz.

Mariana contou durante o café: “Agora você deu de falar dormindo.” O chão fugiu sob os pés do Agenor. “Eu? Falei o quê? Sobre quem?” A mulher viu o rosto congestionado, os olhos aflitos, a voz em falsete “Não deu pra entender, as palavras saíram engroladas, mas você sorria.” Agenor respirou tranqüilo, sabia das origens de Mariana, nenhum segredo entre os dois, Letícia não existia.

Letícia estava com sandálias de salto. Dedos cor-de-rosa, unhas bem feitas. Entregou uns papéis, sua mão roçou a de Agenor. Durante a cerveja com os amigos, no lugar do sorriso a agonia. Os ombros de Letícia no escuro do quarto. De manhã Mariana perguntou, com um sorriso meigo “Você sonhou comigo esta noite?” Agenor em doce hipocrisia “Por quê, querida?” Mariana segurou sua mão “Você disse ‘Meu amor’ não sei quantas vezes. Eu quase te acordei, mas tua cara estava tão feliz que não quis estragar teu sonho. Era comigo que você sonhava?” Agenor olhou-a nos olhos: “Sim. Estávamos na praia, só nos dois. Era noite, mãos dadas, caminhávamos rente às ondas que morriam aos nossos pés. Me lembro nunca ter sentido tanta felicidade.” Mariana se levantou, aproximou-se de Agenor e beijou-o nos lábios, com delicadeza e mimo.

Letícia chegou no trabalho com uma blusa de seda cor de creme. Agenor fingiu não notar a marca dos bicos dos seios sob o tecido macio. Controlou a duras penas a tontura. Fugiu dos olhos verdes, como se isso fora possível. Chegou em casa à noitinha. Depois da janta, um pouco de TV. Agenor entrou no quarto sem fazer ruído. Foi ao banheiro, escovou os dentes, olhou-se no espelho, a mesma cara tão conhecida. Vestiu o pijama, voltou ao quarto, silenciosa sombra. Mariana dormia, inocente. A pobre não merecia aquilo. Não merecia. Agenor abriu o criado-mudo, pegou o revólver e atirou na cabeça da mulher. Não acendeu a luz para não ver o sangue. Deitou-se ao seu lado, fechou os olhos e esperou pela chegada de Letícia.