LEMBRANÇAS DO INEXISTIDO
Raymundo Silveira
 
 

Minha mãe era louca por passas de bananas e eu arrebatei da sua boca uma pequena porção, para dar a outra pessoa. Tinha oito anos. Quando ela morreu, a Lua estava grávida e paria luz mortiça, mal alumiando uma tela pintada com as cores do meu remorso. Nada alivia a angústia de assistir à morte de um ente querido. O pior estava por vir. Enterrar. Entregar aos vermes a carne da tua carne. Mas só quando existem contas a ajustar com a consciência, passa-se a entender o gesto do Iscariotes. A condição humana é um emaranhado de contradições. Avarentos arriscam a vida e a saúde para acumular e não gastar. Orgulhosos se empenham em obter fama e prestígio para depois da morte, embora descrendo na sobrevivência do espírito. Vaidosos compram telas caríssimas que detestam. Aparentemente tudo ilógico. No fundo, subsiste uma razão: o valor do ato ou do objeto em si mesmo; a causa pela causa. Para a violência por mim perpetrada, não havia vestígio de coerência. Então, resolvi me matar quando tudo terminasse. Durante o sepultamento tive um ataque de certeza que me salvou do suicídio, mas me mergulhou no inferno: aquela morta não era a minha mãe. Tudo cheirava a “não-ela”. Deixei o cemitério em prantos; as lágrimas só escorriam para dentro. Ao invés de alívio, sofria mais. Porque a minha mãe não era aquela morta. Tinha apenas um propósito: achá-la. Cuidei não ser difícil, pois só poderia estar em duas partes: no espaço ou no tempo. Ora, o espaço onde ela poderia se encontrar era por demais limitado; se estivesse lá já saberia. Essa intuição poupou-me tempo e decidi procurá-la só no tempo. E foi para onde segui. Recuei às primitivas manifestações da consciência, visto ser impossível ir ao lugar ideal: uma época mais velha do que eu. Procurei a mãe entre os meus quatro e cinco anos de idade. Ao chegar lá, havia oito pessoas sentadas a uma mesa de jantar, entre as quais só reconheci a senhora de cuja boca eu arrancara a passa de bananas – e a quem acabara de enterrar - e outra para quem pretendia dar: uma criatura tão boa que sentia dó do satanás. Todos me trataram como a um deles e mandaram sentar. Preferi caminhar um pouco pela casa da minha infância. Ficava numa esquina. Tinha um pé-direito alto e um calçadão em declive cujo acesso era feito através de duas enormes pedras servindo de degraus. Revi o quarto onde nasci, o outro onde dormia, a sala de brincar e, principalmente, a enorme cumeeira de caule de carnaubeira da qual eu tinha medo, pois diziam que por ali entravam os fantasmas. Mais tarde, quando souberam o motivo da visita, as pessoas em volta da mesa se entreolharam, confabularam baixinho e me fitaram de modo estranho. Como se fosse uma sandice procurar a minha mãe. De súbito, a mulher louca por bananas secas se levantou e caminhou na minha direção. Antes de chegar, um dos comensais também se levantou e a empurrou em sentido contrário. Ela se virou, recostou-se ao peitoril de um corredor, abriu os braços e, gemendo muito, caiu deslizando pela parede. Alguém gritou que estava morrendo. Entrei em pânico. Pouco depois a mulher se levantou, ajudada por quem anunciara a sua morte. Cuidava ser aquela a quem procurava. Só desacreditei quando ela mesma negou. Sobreveio o cansaço infinito dos desamados quando todos os presentes me contaram a verdade: eu jamais tivera mãe. Fruto de geração espontânea, começara a ser sem pré-existir. Enteado de Deus, nasci-me. Ninguém me pariu. Só não encontrei minha mãe porque, em realidade, ela nunca foi. Todavia, me lembro muito mais dela e sinto mais saudades do que se tivesse sido.

Conto publicado na “Revista Cult”, número 112. Abril/2007.