CRO CRO CRO CODILO
UMBERTO GONÇALVES
 
 

Estava formado o Tribunal.

O Juiz, o Promotor, o Advogado e o Conselho de Sentença, formado por 07 jurados.

Dr. Severino Silva era o Advogado mais famoso da Comarca de Santa Genoveva. Até porque havia somente mais dois jovens advogados, ambos discípulos do Dr. Bill (como brincava ao se apresentar).
Salustiano, vulgo “Crocodilo”, havia assassinado o Seu Firmino, dono do Barbicha, o barzinho mais pé sujo da vila Assunção, por causa desse apelido.

Era todo dia, toda vez, todo instante que o velho passava, o Seu Firmino gritava: Cro cro cro dilo! E entrava dando gargalhadas.
O velho baixava a cabeça e desaparecia, o mais rápido que podia, pela outra rua.

Terminada a acusação, o Doutor Juiz deu a palavra ao Dr. Bill.

- Obrigado, Meritíssimo.
Ficou de pé, arrumou a beca, ajeitou os óculos na ponta do nariz (ele não tinha qualquer problema de visão, mas equeles óculos lhes davam um ar de intelectual), juntou alguns papéis na mesa, olhou para os jurados, para a platéia, para o Promotor e começou.

- Merítissimo Juiz de Direito da Comarca de Santa Genoveva, Excelentíssimo Dr. Euclides Peçanha de Melo. Excelentíssimo Senhor Doutor Armando José de Almeida, Promotor Público desta Comarca. Excelentíssimos componentes do Conselho de Sentença. Minhas Senhoras, Meus Senhores.

Tossiu, voltou a arrumar a beca. Olhou para os papéis na mesa. Fez um breve silêncio e recomeçou.

- Merítissimo Juiz de Direito da Comarca de Santa Genoveva, Excelentíssimo Dr. Euclides Peçanha de Melo. Excelentíssimo Senhor Doutor Armando José de Almeida, Promotor Público desta Comarca. Excelentíssimos componentes do Conselho de Sentença. Minhas Senhoras, Meus Senhores.

Sem dar a menor atenção aos olhares, continuou:

- Merítissimo Juiz de Direito da Comarca de Santa Genoveva, Excelentíssimo Dr. Euclides Peçanha de Melo. Excelentíssimo Senhor Doutor Armando José de Almeida, Promotor Público desta Comarca. Excelentíssimos componentes do Conselho de Sentença. Minhas Senhoras, Meus Senhores.

Novamente olhou para todos com ar de superioridade, notando a cara feia do Juiz, o espanto do Promotor e as espressões abismadas dos jurados e dos demais presentes.

Ainda sem dar trégua, repetiu por várias vezes a mesma cantilena.

O Juiz, já sem aguentar a”brincadeira”, chamou a atenção do Advogado:

- Doutor, imagino que o senhor está querendo brincar que este Tribunal. Lembre-se onde está e por que está aqui.

- Sei, Excelência...

- Espero que o senhor não volte mais a brincar conosco, senão serei obrigado a tomar uma providência drástica...

- Pode ficar tranquilo. Posso continuar?

O Juiz assentiu.

O Dr. Bill, mais uma vez arrumou a beca, olhou para todos aguardando o silêncio e ... Mandou ver!

- Merítissimo Juiz de Direito da Comarca de Santa Genoveva, Excelentíssimo Dr. Euclides Peçanha de Melo. Excelentíssimo Senhor Doutor Armando José de Almeida, Promotor Público desta Comarca. Excelentíssimos componentes do Conselho de Sentença. Minhas Senhoras, Meus Senhores.

- Eu falei pro senhor não brincar nesta Casa de Justiça...

- Ora, Doutor, não estou brincando.

E recomeçou.

- Merítissimo Juiz de Direito da Comarca de Santa Genoveva, Excelentíssimo Dr. Euclides Peçanha de Melo. Excelentíssimo Senhor Doutor Armando José de Almeida, Promotor Público desta Comarca. Excelen...

- Basta! (vociferou) Vou ter que mandar prender o senhor por falta de respeito com este Tribunal...

- Calma, Excelência. Não vou mais repetir. Prometo!

- Este Causídico em momento algum faltou com o respeito. Muito pelo contrário, todas as vezes tratei Vossa Excelência e todas as pessoas aqui presentes com respeito e deferência.

O Juiz voltou a recostar-se e ficou boquiaberto olhando o Advogado.

- Veja Vossa Excelência que me conhece a tantos anos, sempre tivemos uma relação de amizade e respeito e apenas por ter lhe saudado, respeitosamente, por 14 vezes – contei bem riscando aqui no papel – o senhor, um homem preparado, juiz experiente, educado, ficou nervoso, bateu com o martelo tão forte que quebrou o cabo (sorriu), chegando até a me ameaçar de prisão – nãocreio que o senhor vá chegar a tanto apenas por isso.

Olhou detidamente para o Juiz e continuou.

- Agora imaginem, Doutor Promotor, Excelentíssimos Jurados, o Senhor Salustiano, meu representado, é homem simples, da roça, pelo simples fato de ter um problema de gagueira, ainda na infância, por não ter pronunciado bem a palavra crocodilo, ouvia de todos abrincadeira CRO CRO CRO CODILO. Ouvia isso centenas de vezes durante todos os dias.

O silêncio imperou na sala.

- Está claro nos autos, no processo, que o Sr. Firmino aguardava ansioso a passagem do Sr. Salustiano para gritar o apelido do mesmo e sair às gargalhadas. Isso ocorria todos os dias, sempre, pelo menos quatro vezes. Uma pela manhã, quando passava para o trabalho. Outra quando passava para o almoço, quando voltava do almoço e quando retornava para casa.

- O meu cliente não saia de casa. Vivia com medo de todos. Bastava colocar os pés fora de casa, já ouvia gritinhos CRO CRO CRO CODILO e risadas estridentes.

- Era um inferno!

- Naquele dia estava nervoso. Descobrira que Firmino, seu algoz diário, tinha ido mais adiante. Havia posto veneno na comida de seu único amigo, o viralatas Cocacola.

- Antes mesmo de chegar na frente do bar, ouviu a brincadeira CRO CRO CRO CODILO... CRO CRO CRO CODILO. Firmino que já havia aprontado com o cachorro, agora gritava bem no ouvido do pobre. Foi nesse instante que ele reagiu... (Olhou demoradamente para todos) Reagiu, Excelências... Reagiu, Senhores e Senhoras Jurados. Defendeu-se de um empurrão. Empurrou também o agressor. Foi quando o Firmino pegou uma peixeira e não teve tempo de usar, pois o meu cliente foi mais rápido segurou-lhe a mão e virou a faca para o corpo do agressor... E não fugiu! Sentou-se na calçada e pediu para chamarem a Polícia.

Voltou a olhar para os jurados e prosseguiu.

- Parece estranho, Senhores e Senhoras Jurados, mas ele me confidenciou que estava gostando de ficar na cadeia. Pelo menos lá ninguém brincava com o defeito dele.

- Merítissimo Juiz de Direito da Comarca de Santa Genoveva, Excelentíssimo Dr. Euclides Peçanha de Melo. Excelentíssimo Senhor Doutor Armando José de Almeida, Promotor Público desta Comarca. Excelentíssimos componentes do Conselho de Sentença. Minhas Senhoras, Meus Senhores, entrego em suas mãos, para julgamento, a vida deste homem, Senhor Salustiano de Oliveira, pessoa digna, nascido, criado e morador desta Cidade, seu único defeito é sofrer de gagueira, cujo maior feito foi defender-se de uma agressão injusta e por isso, por incrível que pareça, está sendo julgado. Obrigado.

Salustiano foi absolvido por unanimidade. Voltou a ser aquele membro ativo da sociedade e nunca mais foi chamado de CRO CRO CRO CODILO.